Crítica: Focada em Caetano, Alegria Alegria ignora Tropicália real

Josi Lopes durante o musical “Alegria Alegria”: ela é o destaque no elenco – Foto: Divulgação

Por Miguel Arcanjo Prado

Os 50 anos da Tropicália, movimento despido de preconceitos musicais que trouxe novos ares à cultura em 1967, motivaram a criação de “Alegria Alegria – O Musical”, em cartaz em São Paulo no Teatro Santander e cujo título é emprestado da música que Caetano Veloso defendeu no lendário Festival da Record de 1967.

E é justamente o cantor e compositor baiano de Santo Amaro da Purificação o centro nevrálgico desta obra, que ignora o peso que outros nomes tiveram no movimento, por mais que Caetano tenha propagado que foi o organizador, a começar do próprio Gilberto Gil, parceiro histórico de Caetano, e também de Tom Zé, sequer citado, isso para ficar só em dois nomes.

Sem uma estrutura dramatúrgica regular, o musical escrito e dirigido por Moacyr Góes aposta em uma costura de cenas curtas, algumas próximas a jogral escolar, entremeadas pelas canções de Caetano  — 20 das 28 músicas são composições dele, solo ou em parceria — e pinceladas de outros compositores, como Tom Jobim, Roberto Carlos e Luiz Gonzaga e o próprio Gil, que foi tema de musical recente com estrutura semelhante, “Aquele Abraço”.

Zélia Duncan em cena com o elenco de “Alegria Alegria”: grande intérprete das canções – Foto: Divulgação

Zélia Duncan — substituída momentaneamente por Laila Garin, por conta de compromissos agendados previamente —, encabeça o elenco e os textos mais profundos. Quando canta, sobretudo, assume o que faz melhor, provocando emoção na plateia. Zélia é uma grande intérprete de canções. Suas ou de outros compositores.

As coreografias de Alonso Barros são um grande alento em meio a tantos musicais por aí com coreografias preguiçosas. O coreógrafo tira o elenco do marasmo, em propostas inventivas de movimentação pelo cenário de Helio Heichbauer, em círculo constante, como as ideias tropicalistas. Um ponto alto é “Soy Loco por Ti América”, uma grande ironia aos militares que certamente teria sido censurada nos anos de chumbo.

Chama a atenção a falta de diálogo da montagem com o Teat(r)o Oficina de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, grande influenciador da Tropicália e seu representante nos palcos com a encenação histórica de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, em 1967. É um lapso que revela muito sobre o musical.

No elenco, quem se sobressai é Josi Lopes. Dona de voz potente e forte presença cênica, ela empunha em sua figura a herança da negritude, mãe da música brasileira, desde o momento em que abre o espetáculo com o “Hino do Senhor do Bonfim”.

Teria feito bem ao espetáculo ter um número maior de atores negros no elenco, sobretudo pelo musical assumir desde a primeira cena que a Bahia é a grande referência musical da Tropicália. E faz isso com um elenco branco usando turbantes como filhos de santo, enquanto Josi Lopes, negra, é vestida de orixá.

A execução politizada da música “Haiti” também teria ganhado mais peso se fosse defendida por um elenco com mais negros e não apenas a baixíssima cota de 12,5 % apresentada neste espetáculo: apenas 2 negros entre os 16 componentes do elenco. Assim, o discurso da canção no palco não se confirma na prática, gerando uma dicotomia.

“Soy Loco por Ti” faz o palco vibrar com recado irônico aos militares – Foto: Divulgação

Uma cena que incomoda, sobretudo pelo olhar colonizador que representa, é quando um dos atores incorpora o “descobridor” Vaz de Caminha, e debocha de um nativo, no estilo “Zorra Total”. A montagem que fala justamente da Tropicália, em vez de dar voz ao indígena, assume o discurso do colonizador fazendo graça com o colonizado. Um horror que vai contra a proposta tropicalista — ver qualquer peça de Zé Celso teria ajudado nessa compreensão.

Por outro lado, as músicas são um alento — a banda do espetáculo é altamente potente — e o elenco é afinado e se entrega às canções, com destaque para Luiz Araújo, João Felipe, Ingrid Gaigher, Patríck Amstalden, Laura Carolinah e Stephanie Serrat.

Zélia Duncan, que encabeça o elenco de “Alegria Alegria”: substituída momentaneamente por Laila Garin – Foto: Divulgação

A única música cuja interpretação parece equivocada é “Divino Maravilhoso”, cujos intérpretes demonstram desconhecer os horrores da ditadura presentes no subtexto desta canção, levando-a para um clima de Carnaval de Salvador que não condiz com a letra nem com os rostos de jovens assassinados pela ditadura militar que surgem no telão ao fundo.

Mas há também grandes acertos na direção musical de Arly Sperling, como o belíssimo arranjo formado na junção de “London London” e “Triste Bahia”, um dos momentos mais tocantes da peça, levando o público a sentir a dor do exílio.

“Alegria Alegria – O Musical” é uma grande compilação de canções de Caetano Veloso sem a pretensão realmente de contar bem uma história, focando mais na música (dele) e na dança como seus pilares. Faltou mais teatro. E o que foi de fato a Tropicália. Mas, pela força da música e de seus intérpretes, envolve a plateia.

“Alegria Alegria” * * *
Avaliação: Bom
Informações: Alegria Alegria no Facebook

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