Gabriela Quintela | Quarentena, Eurovision, Miguel Bosé e Raphael

Por Gabriela Quintela*
Especial para o Blog do Arcanjo

Domingo sem ânimo. Já são quatorze meses de quarentena. Sinto-me como vivendo uma sucessão de domingos montevideanos: é inútil ter expectativas, é inútil tentar se divertir. No fim das contas, o temido domingo em Montevidéu é apenas um estado de espírito sem ilusões, desesperançoso, letárgico. Ainda que se manifeste com muita frequência na capital uruguaia, na realidade ele pode nos assaltar em qualquer canto do mundo… sobretudo numa pandemia.

Hoje ao menos consegui reunir forças para pedalar 15 km na ergométrica e aspirar a casa. Ontem limpei as louças e azulejos do banheiro. A água daqui é aparentemente uma água suja, pois rapidamente se formam capas escuras no banheiro. A sujeira da água não se nota a olho nu, mas deve estar lá. Talvez a água de São Paulo tenha ficado imunda desde a crise hídrica de 2014-2016. Ou talvez seja algo no meu prédio, ou no meu apartamento especificamente. Deveria consultar o zelador. Mas nunca o faço, em parte por inércia, em parte porque não há interesse da minha parte em resolver mais nada em São Paulo.

Tento ler um poemário de Alberti, mas acabo voltando às redes sociais, scrollando compulsivamente na esperança de interações sociais. Mas é como tentar matar a sede bebendo álcool…

Ontem teve Eurovision. Ganhou uma banda de rock italiana, cantando em italiano. Acho bonito quando os competidores cantam na sua língua materna, em vez de pasteurizarem sua autoexpressão usando o inglês. O bonito de uma competição assim é ver a cor local. Se a música é boa, o idioma diferente nunca é um obstáculo, é apenas mais um atrativo. E quando dá match, quando a música bate, aí surge a fascinação pela cultura, dá vontade de aprender o idioma só pra cantar junto.

Um grupo ucraniano também disse a que veio ontem, cantando em ucraniano um hit perfeito para o pós-apocalipse. Simpatizo com os ucranianos porque, diferentemente dos outros europeus, levam uma vida incerta e conturbada como a do brasileiro. Já quando vejo alguém da Suíça cantando, por melhor que seja o artista (e o representante suíço ontem realmente brilhou), é difícil me conectar com aquela arte. O que um suíço pode me dizer? Já estive na Suíça, é uma bolha dourada, Lucerna parece uma maquete, e o lago é transparente de tão azul. Por um instante senti vontade de morar lá, é verdade, mas só para logo depois achar tudo tão perfeito, tão radicalmente diferente da minha vivência de latino-americana… que logo se tornou difícil desejar aquela vida. É difícil desejar algo que não se conhece, por melhor que seja.

Sempre me conecto mais com os latinos: temos vícios e qualidades em comum. Mas para além desta conexão, o fato é que os italianos de ontem realmente eram uma combinação explosiva de glamour, sex appeal, juventude, atitude, potencial mercadológico… e um hit que deve marcar época. Que interessante que a Itália ganhe o Eurovision ao final da semana em que morreu Franco Battiato, mestre do pop experimental, autor da maravilhosa “Voglio vederti danzare”. Fiquei contente de ter assistido. O povo que assistiu ao Abba ganhando o Eurovision de 1974 talvez tenha a mesma sensação de ter participado do nascimento de uma estrela.

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Nesta semana chegou aqui um vinil do Miguel Bosé, o único que eu ainda não tinha: “Bajo el signo de Caín”, de 93. Achei chato. Ainda que “Si tú no vuelves” seja talvez a melhor gravação do Bosé enquanto cantor, de resto é o típico disco de artista quando quer afetar maturidade. E há quem diga que é o melhor álbum do Bosé. Ai ai ai. A pessoa tem que estar morta por dentro pra preferir isso ao Bosé cantando, em 84, “Bandido ¡ay! muero yo por ti, tu paloma fui, SEVILLAAAAAA!”

Devo admitir que minha fase Bosé já passou. Quem diria. Mas não dá pra ser fã de quem é negacionista, antivacina e espalha teorias conspiratórias. Recentemente Bosé admitiu, numa entrevista à TV espanhola, que cheirou cocaína por várias décadas. Li no El País que o abuso da droga é um provável motivo do negacionismo do cantor: “a relação entre a cocaína e a paranoia está bem estabelecida”, afirma o texto. Bosé diz que parou com a cocaína há sete anos. O problema é que o estrago no cérebro já está feito e não tem conserto.

A voz de Bosé já se foi: hoje ele mal consegue falar, e o que sai é um ruído rouco. Talvez nunca volte a cantar, e isso nem é o pior. Já nada resta daquele Bosé criativo, provocador, do divo camaleônico do pop ibérico, tampouco daquela languidez do olhar quase feminino, ou do sorriso “fascinado e fascinante”, “o sorriso de Narciso debruçado sobre o espelho d’água”, que faria o Aschenbach de “Morte em Veneza” se desesperar e, como na noite em que o jovem Tadzio lhe sorri, exclamar: “Não se deve sorrir assim para ninguém!”

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O rei está morto; longa vida ao rei: agora estou viciada no Raphael e em seus filmes-veículo dos anos 60, que me mantêm sedada com doses cavalares de escapismo. São filmes adoráveis, ainda que puritanos e feitos na medida para a Espanha católica e franquista da época. Que talento, o de Rapha. Gostaria de ter um talento assim, indiscutível, um talento que determinasse uma única vida possível para mim. Vejo Raphael cantando, mexendo os braços à sua maneira teatral, e não cabe dúvida de que é alguém que não poderia jamais fazer outra coisa da vida—nem que tentasse muito, nem por extrema necessidade.

Mas as canções de Raphael são românticas, e apesar da intensidade e dos arroubos teatrais, são baladas que apelam mais ao espírito que à carne. O erotismo é sutil, como quando ele canta, em “Cierro mis ojos”: “Yo no te veré… yo no te veré / Puedes hacer… lo que quieras conmigo”.

Talvez por isso eu tenha ficado tão impactada ontem ao ver no Eurovision o glam-rock dos italianos: um choque de mundanismo na minha vidinha de monja. Passei algumas horas obcecada pelo vocalista, vendo no Instagram sua fascinante galeria de fotos sexualmente ambíguas, sua exuberância e seu frescor mediterrâneos, o nariz levemente aquilino. Damiano David é seu nome, e star quality e sex appeal não lhe faltam.

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Que aborrecimento ter que usar meu tempo para declarar imposto de renda. Não é à toa que me perco nos filmes de Rapha. Vivendo uma intriga internacional em Paris, buscando sua amada em Nova York ou o irmão em Buenos Aires, se apaixonando em Bariloche, em Acapulco ou nas paisagens de Mallorca, despedaçando o coração de uma fã em Londres ou apenas vivendo na cidade mais sonhada, Madri, Rapha é meu contato com o mundo, vasto mundo. Por isso eu não gosto do filme em que ele é um contraventor que, para expiar seus pecados, decide se enclausurar num mosteiro. Não! Deus não enche uma pessoa de dons, como fez com Rapha, para que ela se tranque num mosteiro.

Impressionante que ele conseguisse segurar tantos filmes e discos só com seu vozeirão e carisma, sem os “feats” a que hoje estamos acostumados. Inclusive, os melhores números desses filmes geralmente têm poucos elementos: apenas Rapha e um fundo preto, ou Rapha e uma paisagem bonita ao fundo.

Rapha completou agora em maio 78 anos e está para iniciar uma turnê celebrando seus 60 anos de carreira. Não se aposenta porque nasceu artista e vai morrer artista: aposentar-se seria a morte em vida. A voz já não é nem de longe a voz de sonho dos anos 60, quando parecia saída de outra dimensão. Mas é sua voz, está aí, e ele ainda canta, apesar do transplante de fígado, apesar das quase oito décadas nas costas. O discernimento está intacto, como se nota num vídeo em que ele pede aos espanhóis que fiquem em casa para evitar a propagação do vírus. E quando sorri… bem, quando Rapha sorri, a star quality ainda está toda ali, no olhar luminoso e no sorriso que é um misto de encanto natural (“ángel”, como dizem os espanhóis) e de décadas de experiência profissional em encantar o público. Quando ele sorri, eu sorrio junto, dominada pelo carisma arrebatador daquele quase octogenário. Rapha-el puto amo.

Raphael competiu duas vezes no Eurovision, em 1966 e 1967. Não ganhou, mas provocou furor com o estilo teatral, a voz caudalosa e a juventude transbordante. Se tiver sorte, daqui a várias décadas o italiano do Eurovision 2021 será não como Bosé, mas como Raphael, e conservará, a despeito do impacto do tempo, seu “ángel”, sua magia, enfim, sua qualidade única.

*”Sólo soy una persona”, assim se define Gabriela Quintela, jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia e com passagens por veículos como Folha de S.Paulo e R7/Record. Siga @gabiquintela.

Gabriela Quintela – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo

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Jornalista cultural influente e respeitado no Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra o júri de Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prêmio Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil de Curtas. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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