Ferdinando Martins: O lugar de fala no teatro

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O lugar de fala no teatro é o tema da estreia de Ferdinando Martins no Blog do Arcanjo – Photo by Tima Miroshnichenko on Pexels.com © Blog do Arcanjo 2023

Por FERDINANDO MARTINS*
Especial para o Blog do Arcanjo

Passei alguns dias pensando sobre o que poderia ser o texto de estreia desta coluna. A ideia que Miguel Arcanjo e eu conversamos longamente é abranger universos e bolhas que, muitas vezes, não se comunicam, ou se tocam de maneira enviesada. De um lado, tem o peso da universidade. Sou professor de artes cênicas (e outras artes), oriento teses e dissertações, pesquiso, publico e participo de eventos acadêmicos. De outro, sou frequentador assíduo de teatro, dança, performance, jurado de prêmios, ávido consumidor de livros e audiovisual, alguém que gosta de estar no meio de gente da cultura.

Há alguns temas que são recorrentes nas coisas que faço, entre eles as novas epistemologias de gênero, sexo e afeto e a análise da produção cultural. Foi com tudo isso em mente que o tema lugar de fala para essa primeira colaboração foi se tornando recorrente. É uma das expressões mais frequentes na militância virtual, usada muitas vezes de maneira intransigente, como uma tentativa de censura do bem, querendo silenciar os que supostamente não sabem nada sobre nós, sobre o outro, sobre qualquer alteridade que, por algum motivo, se tornou evidente. Uma vez, a Lucia Camargo, grande nome do teatro que nos deixou em 2020, me perguntou a queima-roupa: o que seria o lugar de fala no teatro? Não vou tentar responder, mas fornecer alguns elementos que nos ajude nesta reflexão.

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Photo by Francesco Ungaro on Pexels.com © Blog do Arcanjo 2023

A expressão lugar de fala vem do feminismo surgido nos Estados Unidos no início dos anos 1990. Feminismo branco, classe média. A ideia, porém, é bem mais antiga. Em 1851, a ativista negra e abolicionista Sojourner Truth, em 1851, na Convenção dos Direitos das Mulheres de Ohio, diante de certos privilégios oferecidos às suas colegas brancas, perguntou: “E eu não sou uma mulher?”. Evidentemente, diante de pessoas que falavam em abrir portas para donzelas frágeis e alvas, ela denunciava o que hoje chamaríamos de desumanização de uma mulher negra.

Voltando ao feminismo estadunidense. Em 1991, Linda Alcoff publicou o artigo “O problema de falar pelos outros”, considerado um marco na história da ideia de lugar de fala. Nesse texto, Linda evidencia a impossibilidade de sabermos tudo e as implicações desse nosso saber parcial sobre o outro. Só podemos conhecer o mundo a partir de nossa experiência individual e seria autoritário reivindicarmos ir além disso. Se querermos uma comunicação sem hierarquias, precisamos organizar a fala e a escuta, reconhecer quem está falando e de onde, tornarmos mais receptivos, menos presunçosos, baixar nossas armas.

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Photo by Wendy Wei on Pexels.com © Blog do Arcanjo 2023

O lugar de fala é, portanto, colocar as nossas diferenças em evidência para chegar a consensos, diminuir preconceitos, descobrir que a alteridade é algo rico. O teatro é um local privilegiado para esse exercício. Na sua origem, a palavra teatro guarda a ideia de “lugar de onde se vê”. Há poucos anos, pouca gente se importava em ver artistas cis fazendo personagens trans. Foi preciso muita insistência de gente trans e travesti para serem ouvidas. A resposta “ah, mas ser ator (ou atriz) é poder ser qualquer outra pessoa”. Tivemos de acordar para o fato que não era essa a questão. Artistas como Luh Maza, Renata Carvalho, Fábia Mirassos, Leona Jhovs, Morgana Manfrin, Leo Moreira Sá, entre muito mais gente, mostraram que está em jogo a sobrevivência desses criadores, pois pessoas cis encontram trabalho com mais facilidade, e a necessidade de acabar com a abjeção aos corpos estigmatizados.

Uma das músicas de “Brenda Lee e o palácio das princesas” fala “você não duraria nem ao menos dez minutos se estivesse em minha pele”. No “Manifesto Transpofágico”, Renata Carvalho diz “ninguém abraça travesti”. Reconhecendo nosso lugar de fala como pessoas cis, nós nos damos conta, ainda que nunca como se fôssemos trans, de questões que estão fora do nosso escopo. O teatro não muda o mundo, mas torna-o mais inteligível e mexe com nossos afetos. Se hoje temos quatro travestis concorrendo no Prêmio Shell, Verônica Valentino e Marina Mathey ganhando o Prêmio Bibi Ferreira, e “Brenda Lee” vencendo como melhor espetáculo na APCA e também o Prêmio Arcanjo de Cultura, é sinal que alguma coisa está mudando. Na mesma vibração, temos Clayton Nascimento – ator negro, que transformou um violento ataque racista no glorioso monólogo “Macacos”, eleito melhor ator pela APCA em 2022. É pouco, sem dúvida, mas reconhecer via teatro a força emancipatória dos diferentes lugares de fala já começa a fazer diferença.

Ferdinando Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, onde atua desde 2009 como professor nas áreas Estética e História da Arte, Teatro e Estudos da Performance. Desenvolve pesquisas sobre produção cultural, gênero e sexualidade nas artes, filosofia e teoria do teatro, estudos queer, psicanálise e produção cultural. É jurado os prêmios Shell, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Desde março de 2023, realiza colaboração com textos especialmente escritos para o Blog do Arcanjo.
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Jornalista cultural influente e respeitado no Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra o júri de Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prêmio Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil de Curtas. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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