São José das Três Ilhas – Um cantinho encantado de mundo em Minas | Por Guta Nascimento

Por Guta Nascimento
@gutanascimento
Foi paixão à primeira vista.
E aconteceu por meio de uma imagem.
Era agosto de 2020 e já estávamos há meses em confinamento.
Uma grande amiga – daquelas que quando a gente para pra fazer as contas vemos que já temos mais de 30 anos de amizade – postou no Instagram uma foto que em meio a tantos outros posts capturou minha atenção.
A imagem singela não tinha nada de mais.
Era apenas uma casa branca de portas e janelas azuis. Mas, de tão banal, tinha um encantamento que despertou minha curiosidade. Onde seria aquela construção de portas, telhados e janelas tão parecidos com os de Tiradentes, cidade que amo percorrer com suas ruas de pedra e casario histórico?

São José das Três Ilhas, dizia a localização no alto do post.
Fiquei curiosa.
Falamos pelo WhatsApp, e ela contou que era onde ela havia passado uma parte da infância. Mandou outras fotos e terminei nossa primeira conversa sobre o lugar dizendo “vou lá encontrar vocês um dia”.
Dez meses depois, o dia chegou.
São José das Ilhas é uma raridade.
Tem em torno de duzentos moradores apenas.
Oficialmente é um distrito de Belmiro Braga, pequeno município próximo a Juiz de Fora, no sul de Minas, a menos de quarenta quilômetros da divisa com o Estado do Rio.
É composto de uma única rua comprida, estreita e tortuosa e algumas outras poucas, menores, paralelas e perpendiculares.
Mas isso é o que vê o visitante pragmático.
Quem viaja com o coração, enxerga uma outra São José.
Um lugar encantado, suspenso no tempo, num ritmo mais generoso com o que há de humano dentro de nós.
Só que para se conectar com esse outro compasso, é preciso deixar para trás a pressa, o virtual incessante, a infodemia e tudo que nos sufoca.
Não é chegar e automaticamente se transportar para outro fluir.
Até porque, em lugares assim, nada parece ser automático. A passagem de um estado para outro se dá por decantação e ela ocorre pela viagem para se chegar até lá.
Esse delicado movimento se dá ao deixarmos a BR-040 e tudo que ela representa para trás.
A saída 802, em direção a Belmiro Braga, Monte Verde e Rio Preto, muda a paisagem.
Viajar pelas estradas menores de Minas é ser atravessado por montanhas e vales. É se ver em trilhas em serras. Ser arrodeado por vales. Serpentear ininterruptamente. Mirar alterosas. E isso nos transforma.
A viagem até São José das Três Ilhas traz um pouco de tudo isso e um encanto a mais.
Em uma despretensiosa curva, uma miragem.

Uma árvore ancestral e frondosa no alto de uma colina obriga o viajante a parar para contemplá-la. O tronco alto e enorme, dos tipos que necessitam de umas quinze pessoas para circundá-los, a copa densa e cerrada, indicam que estamos diante de um ser perene, secular, que, majestosamente, conseguiu sobreviver através de muitos e muitos anos à estupidez humana que devasta tudo que vê pela frente, inconsequentemente assassinando as espécies que nos dão a vida.

Árvores ancestrais são magnificentes, esplendorosas, grandiosas, suntuosas, opulentas.
Emanam generosidade em deliciosas sombras.
Podem ser testemunhas de celebrações e alegrias mas, em geral, em solos coloniais, o que viram foi a injustiça do nosso passado escravocrata, latifundiário, de vergonhosa concentração de riquezas calcada sobre a pele negra e assombrosa violência dos crimes pela febre bárbara de posse da terra.
É difícil abandoná-la e seguir estrada adiante. Mas o povoado de Fortaleza nos espera.

Casas simples, com cerquinhas de bambu, jardins amorosos, plantas felizes nas varandas e hortas férteis, nos fazem parar para xeretar a vida alheia. É mais forte que a gente a vontade de imaginar quem mora ali, há quanto tempo, como é o dia a dia e quanto amor há no cuidado de plantas que a olhos nus nos mostram o quanto são regadas com afeto.

O asfalto desapareceu há algum tempo, já cruzamos e margeamos às cegas o Rio do Peixe, quando no alto de uma árvore um gato se refugia a escapar de vários cachorros.
Não tem como não parar o carro para rir com a cena.

É quando conhecemos Magda e a casinha azul bem na beira da estrada onde ela vive atualmente enquanto sua casa, mais à frente, sofre uma reforma. Atrás dela surgem suas duas filhas e seus dois filhos. O marido, um descendente da etnia indígena Puri, não está. Mas, ao conversarmos de pandemia, de confinamento das crianças impedidas de ir fisicamente à escola, das aulas virtuais que só podem ser assistidas quando há dinheiro para o crédito no celular; ela nos conta que na casa raramente se toma remédio. O conhecimento ancestral herdado dos antepassados dele o faz sair na mata e voltar carregado de ervas que, misturadas em vidros distintos, curam tosses, resfriados, bronquites e afins. Os xaropes da mata são eficientes, maravilhas de organicidade sem efeitos colaterais.
Magda trabalha numa fazenda mas é sábado e temos tempo de prosa para saber mais sobre a maritaca que a filha mais velha carrega no ombro durante a conversa, que Sarrafo é o nome do gato que se recusa a descer da árvore mesmo que a turba dos cachorros já tenha se dispersado, que a primeira dose da vacina da Covid-19 já veio até a casa dela pelas mãos da profissional do posto de saúde mais próximo (que orgulho do nosso SUS!) e que os meninos fogem quando, volta e meia, lá vem ela, a profissional, fazer aquela visitinha pra saber como anda a saúde de todos.

A conversa é uma delícia mas a estrada nos chama de volta. Nos despedimos falando da noite mais fria do ano na região, que havia acontecido dois dias antes, e que Magda está com saudade de sua casa, onde o fogão a lenha fica do lado de dentro e não deixa ninguém sofrer de frio, enquanto a casa onde mora agora, com o fogão na área externa, não comunga da mesma generosidade com a família.
Voltamos pro carro e pra viagem de alma leve, embalada pela imagem dos filhos de Magda, meninos-reis, pedalando felizes pela estrada de terra, levantando poeira e dando cavalinhos de pau. A liberdade que um dia tivemos e perdemos.

Falta pouco agora para chegarmos a São José das Três Ilhas e a ansiedade é alcançar a curva do Tira-Chapéu.
O prosaico nome tem motivo.
Ela seria uma curva qualquer caso ali não fosse o local de onde se tem a primeira e inesquecível vista do distrito.
A imponente Matriz de São José.

Há algo de emocionante em ver a catedral pela primeira vez.
E não à toa, em tempos antigos, era a hora dos viajantes tirarem o chapéu para saudar ao longe, no alto do morro, a lateral – mas não por isso menos imponente – da belíssima construção em pedra com suas duas torres e arcos em pavimentos.
A vontade de ver a igreja mais de perto aumenta, mas antes que este desejo se torne realidade, São José tem mais um presente para quem está a seu caminho. A vista da cachoeira. Hoje é proibido banhar-se nela, talvez por ser muito íngreme ou ser escorregadia, mas já houve o tempo em que os moradores se deliciavam em seu leito inclinado, numa clareira quentinha sob o sol.
Chegamos.
Nas ruas não há praticamente ninguém.
Adentramos a rua principal e vemos a plaquinha da Barraca Colaborativa (@barracacolaborativa.sj), uma deliciosa iniciativa que reúne numa garagem de uma casa produtos artesanais feitos por moradores da região.

É meu primeiro contato com alguns nomes deles. Há doce de figo do Jardel, rosca doce e biscoitos da Lúcia e da Ângela, queijos produzidos na região, o conhecido Café Ferreira, torrado em São José, artesanatos em macramê da Isabel. Leio nos cartõezinhos alguns outros nomes e fico feliz de poder levar pra casa um pouquinho das delícias locais feitas por quem mora ali. A barraca funciona apenas sábados, domingos e feriados, das 10h às 17h. Me atraco a um docinho de amendoim e saio correndo com medo que, de tão gostoso, acabe comprando e devorando uma caixa inteira.
Barões do Café
Se você acha que já viu São José das Três Ilhas em algum lugar, é possível.
O vilarejo já foi cenário de duas produções do cinema nacional, os filmes ‘Lavoura Arcaica’ e ‘O Menino Maluquinho 2’. No último, dirigido por Fernando Meirelles, Maluquinho vai passar as férias de julho na cidade do avô, Tonico, interpretado pelo ator Stênio Garcia.

O centro histórico é bastante preservado. Tudo nele, a igreja majestosa, a rua principal, os cinco Passos da Paixão de Cristo e o casario arquitetônico colonial, remetem à era do auge dos Barões do café. E alguns deles foram famosos na região.
O primeiro morador do então povoado foi Antônio Bernardino de Barros, que veio a ser o conhecido Barão das Três Ilhas. Junto com seu irmão, o Barão de São José Del Rey e os Barões de Santa Justa – que chegou a ter dois mil escravizados na região de Vassouras, no Rio de Janeiro, – e de Santa Fé, em Minas Gerais, decidiram erguer a suntuosa matriz de estilo neorromântico para demonstrar seus poderio e riquezas. Cada fazendeiro da região que colaborou para erguer a igreja construía também uma casa na rua principal à frente do templo, para que suas famílias pudessem trasladar-se das fazendas para acompanhar as festividades católicas da Catedral. Assim, o povoado surgiu.

As obras começaram em 1880 com os enormes blocos de pedras trazidos pelos escravizados. Seis anos depois, foi celebrada a primeira missa com o templo ainda em construção. A capela-mor só foi concluída em 1888, mas com a Abolição da Escravatura, as obras foram interrompidas e só retomadas alguns anos depois. Sem o dinheiro abundante das fortunas construídas pelo suor do trabalho escravo, a igreja foi finalizada sem pedras e sim com tijolos, mais leves e mais baratos.

Hoje, a matriz, tombada pelo IEPHA, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, permanece a maior parte do tempo vazia. Só há uma missa no primeiro domingo de cada mês, sempre às 11h da manhã. Mas isso não impede que o visitante possa conhecer o lindo interior em arcos. Para entrar, basta pedir a chave ao Adilson, morador da cidade. Ou ao Edinho, da Hospedaria e Pousada São José. Como encontrá-los? Basta perguntar para qualquer pessoa na rua. São apenas 200 habitantes e todos se conhecem.
Ao visitar a igreja, repare numa curiosidade.

O anjo que enfeita o chafariz.
Com as asas quebradas, contam os moradores, que antes ele ficava no cemitério. Mas um dia, uma forte chuva quebrou as asinhas e, para salvá-lo, o querubim foi transferido para a igreja.
Ficou lindo lá.

E não deixe de admirar os Passos da Paixão de Cristo, as pequeninas capelas construídas para serem utilizadas ao longo dos trajetos das procissões nos Domingos de Ramos. São construções singelas que abrigam um pequeno altar, muito comuns nas cidades históricas mineiras.

Tudo no centrinho é bucólico. As casas coloniais e até mesmo as construções abandonadas que já dão sinal de ruínas.

O único sobrado, que era do Barão de São José Del Rey, também é tombado.
O casario conservado se divide entre casas residenciais e alguns poucos prédios comerciais, como um cartório e uma mercearia.

Mais ao longe, entramos na venda do Seu Carvalhinho, que, conta minha amiga, nos anos 1970 e 1980 era o único lugar de São José das Três Ilhas onde havia um telefone. Hoje, o lindo e intacto balcão e os armários do chão ao teto nos lembram os antigos armazéns de secos & molhados.

Contemplar as casas a passo lento, admirar suas cores, espiar as delicadezas que elas abrigam, sentar nos bancos na rua e não ver praticamente ninguém passar é uma experiência intensa, bela e perturbadora.

Quando digo que São José das Três Ilhas é encantado é não porque haja nele alguma magia, mas porque lugares assim, pequenos em meio ao turbilhão das grandes cidades; que preservam suas histórias e suas casas em meio à destruição cega dos nossos passados; alteram nosso estado de consciência e percepção.
Eles nos mostram a possibilidade de, mesmo no mundo frenético de hoje, habitar um outro tempo. E nos provam que é possível ser feliz desaceleradamente.


Guta Nascimento é jornalista e adora trazer notícias do Novo MundoFoi diretora da Revista CLAUDIA, diretora de conteúdo da Escola de Você e do portal feminino Tempo de Mulher. Em televisão, trabalhou nos telejornais Jornal Nacional, Jornal da Globo e Jornal Hoje, da TV Globo. Baseada em Nova York, participou de grandes coberturas internacionais como a Guerra de Kosovo e o regime talibã no Afeganistão. No SBT, fez parte da equipe que, em 2005, reestruturou o departamento de jornalismo, criando o telejornal SBT Brasil. Na Record TV, cobriu grandes eventos internacionais, como as Olimpíadas de Vancouver e de Londres. Em 2014, cobriu o surto de Ebola, na Guiné Conacri, para a Band. A trabalho, conheceu o Butão e foi duas vezes ao Pólo Norte, onde se encantou com o sol da meia-noite. A passeio, subiu a pé até o acampamento-base do Everest e o topo do Kilimanjaro. Mergulhou com tubarões-baleia na Tailândia e sonha um dia tirar uma selfie no final da Muralha da China. Atualmente é nômade digital e quando a saudade de ver estrelas aperta, se refugia na @refazendarioxopoto
Editado por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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