Coluna do Mate: Mulheres gigantes do teatro

Cibele Forjaz, uma das artistas-mulheres gigantes do teatro brasileiro – Foto: Bob Sousa

Existem diferenças, em teatro, do trabalho apresentado pelas mulheres? O universo feminino observa e traduz o mundo de modos diferenciados àqueles dos homens?

O pesquisador Alexandre Mate – Foto: Bob Sousa

Por ALEXANDRE MATE*
Especial para o R7

Houve um tempo, pelo menos no teatro erudito (aquele praticado nos espaços de quem detinha o poder político e a riqueza econômica) em que as mulheres não atuavam nas representações teatrais. Homens apresentavam todas as personagens femininas.

No teatro grego da Antiguidade clássica, havia um figurino que escondia os intérpretes atrás de diversos tipos de máscaras faciais, onkus (espécies de adereços de cabeça), coturnos (sapatos com imensos saltos altos) e capas de diferentes tamanhos. Os corpos dos atores “sumiam” no figurino.

Em razão desse processo de montagem (será que as conhecidas drag queens de hoje teriam alguma inspiração nisso?), não se afigurava inaceitável que os homens, em situações distintas aparecessem e se colocassem no lugar de mulheres. Ou seja, o travestimento no teatro não era algo estranho.

Até os dias atuais é comum aceitar que homens, preparados desde pequenos, apresentam os papeis femininos na Ópera de Pequim, por exemplo. Múltiplas são as tradições ligadas à cultura popular em que os homens aparecem travestidos como mulher.

Se bem que na totalidade das tradições populares sempre se saiba, sobretudo pelo comportamento chamado jocoso, que são homens vestidos de mulheres. Na cidade paulistana de Santos, por exemplo, e até pouco tempo atrás, normalmente uma semana antes do início das tradições carnavalescas, bandos de homens grotescamente vestidos como mulheres, participavam do chamado Banho da Doroteia.

Homens viram mulheres no tradicional Banho da Doroteia, em Santos – Foto: Divulgação

Sexo como tabu

No filme Traídos pelo Desejo, de Neil Jordan, um ex-militante do IRA (Irish Republican Army), apaixona-se pela namorada de um soldado inglês que, de certo modo, ele ajudou a matar. Sentindo-se culpado o ex-militante aproxima-se da moça, apaixona-se por ela, mas quando vão ter a primeira relação, o rapaz se surpreende com o pênis da “moça”.

As artes da representação estão repletas desse tipo de situação, Madame Buterfflay, ópera de Giacomo Puccini, com libreto (texto escrito) de Luigi Illica e Giusepe Giacosa, apresenta a história do relacionamento entre um diplomata francês e um cantor da ópera de Pequim.

Recentemente, e com inspiração em Guimarães Rosa, o dramaturgo Newton Moreno escreve a premiadíssima peça Agreste. No pungente e belo texto, Moreno apresenta a história de um casal segregado em uma pequena comunidade que, com a morte do marido, no dia em que o corpo deste é preparado pelas carpideiras, se descobre que “ele” não é ele, mas ela.

A partir desta evidência, a mulher passa a ser acusada e a sofrer todo tipo de admoestação. Entretanto, não se sabe se ela sabia que o marido era uma mulher… Situação decorrente em sociedades em que o sexo é visto e tido como tabu.

Não são poucos os lugares no mundo em que as mulheres, ainda, não se despem para fazer sexo com seus maridos, que se pratica a relação sexual com luz acesa, que as mulheres podem demonstrar qualquer prazer com o ato…

Mulheres artistas

Mulheres continuam, ainda, a serem massacradas dos mais diferentes modos e pelos mais sutis e explícitos estratagemas. Entretanto, essa sempre urgente e necessária questão não se caracteriza no assunto deste texto. Gostaria de tratar de algumas mulheres artistas, que conciliam carreira universitária – em universidades públicas e estaduais -, afazeres domésticos (algumas têm filhos) e carreira teatral.

Desse modo, e circunstanciado pelas limitações de espaço desta coluna, lembrei-me das gigantes: Andréia Nhur, Beth Lopes, Cibele Forjaz e Maria Thais (da Universidade de São Paulo); Neyde Veneziano e Verônica Fabrini (da Universidade Estadual Paulista) e de Lúcia Romano (do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”).

Se pudesse discorrer de cada uma delas precisaria de inúmeras e, ao mesmo tempo, incontáveis páginas… De qualquer modo, e de maneira absolutamente sucinta, é preciso destacar alguns detalhes:

Mulheres de destaque: à esq., Andréia Nhur; à direita, Beth Lopes – Fotos: Bruna Moreschi e Caroline Moreas

Andréia Nhur pertence a uma família de artistas ilustres (Janice Vieira e Roberto Gill Camargo, são seus pais) e atua, de modo colossal, como atriz-bailarina do Grupo Katharsis, sediado em Sorocaba (interior de São Paulo).

Beth Lopes, nascida e formada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, é diretora e fundadora da Companhia de Teatro em Quadrinhos (SP), cuja pesquisa estética é pioneira, com substancial e surpreendente resultado ligado ao experimentalismo.

Cibele Forjaz tem sua formação, pesquisas e trabalhos todos desenvolvidos em São Paulo. A artista é fundadora e diretora da Companhia Livre e tem desenvolvido um trabalho insano. Cibele dirige e vive de maneira intensa.

De seu processo de formação, seguramente o Teat(r)o Oficina (ou Uzyna Uzona), principalmente como iluminadora foi o mais intenso.

Como diretora, investigando atualmente questões mais antropológicas, as questões indígenas e africanas têm se caracterizado em seus focos principais. Seu último espetáculo, imbricando teatro e dança, com direção partilhada com Lu Favoretto, foi Xapiri Xapirepë.

Maria Thais, nascida no sertão da Bahia, em Piritiba, fez parte de seus estudos no Rio de Janeiro e em São Paulo – hoje uma referência mundial em teatro – é diretora e fundadora da Companhia de Teatro Balagan.

Como pesquisadora, articuladora de propostas pedagógico-artísticas (ela foi a criadora da Escola Livre de Teatro de Santo André) e diretora, Maria Thais tem uma carreira admirável e suas obras, sobretudo na última década, tem se dedicado a um admirável processo de pesquisa de estudos culturais.

O último espetáculo da diretora foi Recusa (que ainda se apresenta em ocasiões específicas), obra surpreendente e promotora de uma emoção próxima do indescritível.

Maria Thais: “obra promotora de emoção próxima do indescritível” – Foto: Daniel Sorrentino/Clix

Professora da Universidade Estadual de Campinas (cidade que fica a cerca de 80 km de São Paulo), e atuando no Instituto de Artes, Verônica Fabrini tem desenvolvido um coerente e constante processo de pesquisa, sobretudo, como diretora teatral.

Alguns dos espetáculos dirigidos pela diretora, na Boa Companhia (de Campinas), principalmente Primus (há mais de dez anos vem sendo apresentado), articulam experimentalismo e emoção de modo rigoroso. Atualmente, Verônica participa, como atriz, do espetáculo Agda, dirigido por Moacir Ferraz.

À esquerda, a “coerente” Verônica Fabrini; à direita, a “ousada” Neyde Veneziano – Fotos: Divulgação

Neyde Veneziano pesquisadora de formas “escondidas e colocadas abaixo do tapete”, por sujeitos mais ligados a certo tipo de teatro, tem apresentado obras escritas da maior relevância para o estudo do teatro.

Como diretora, Neyde é ousada e transita com várias características do teatro de revista e da comédia popular (suas fontes majoritárias de pesquisa). Seus dois últimos espetáculos foram Mistero Buffo, do pesquisador italiano de teatro popular, Dario Fo, e A Noiva do Condutor, de Noel Rosa, atualmente, em circulação pelo interior paulista.

Lúcia Romano: na universidade, no teatro e também no cinema – Foto: Divulgação

A atriz Lúcia Romano, nascida e com formação, basicamente, desenvolvida em São Paulo, é, sem dúvida, uma das mais importantes atrizes de sua geração. Lúcia fez Escola de Arte Dramática (formação de atriz), é bacharel em Teoria do Teatro (ECA-USP), e seus estudos de pós-graduação se desenvolveram na PUC de São Paulo (mestrado) e, também, na ECA-USP (doutorado).

Atualmente, a atriz tem desenvolvido seus últimos trabalhos em teatro pela Companhia Livre, com destaque para Raptada pelo Raio 2.0 (2011 – que está sendo reensaiado), O Idiota (2012), A Travessia da Calunga Grande (2012), Pais e Filhos (2012-2013), Xapiri Xapirepë (2014), Ponto de Partida (2014).

Lúcia Romano das artistas selecionadas tem se dedicado exclusivamente à atuação, cujas ações se estendem também para a televisão e o cinema. Em cinema, neste ano, e a obra precisa ser assistida, a atriz tem participação no filme Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2013), dirigido por Daniel Ribeiro.

Grandes mulheres, excepcionais artistas, obras exemplares…

De fato, arrisco a afirmar que, algumas vezes, pode-se perceber um trabalho feminino se distinguindo do masculino… Homens podem fazer e apresentar mulheres (a recíproca também se verifica), algumas – e raras vezes – com sensibilidade e beleza; diretoras teatrais, por sua condição de gênero (são mulheres), podem também apresentar particularidades que diretores homens não alcancem…

Gosto do trabalho teatral apresentado pelas artistas mulheres. Se for bacana o que aqui aparece escrito tente perceber que o afirmado é verdadeiro: existem diferenças, em teatro, do trabalho apresentado pelas mulheres? O universo feminino observa e traduz o mundo de modos diferenciados àqueles dos homens?

Perguntas. Perguntas! Perguntas? Perguntas…

*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisador de teatro. Ele escreve sua coluna no blog sempre no primeiro domingo de cada mês.

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1 Resultado

  1. Phillipe disse:

    É sempre um prazer intelectual ler a coluna do Mate. Sobre mulheres interpretando homens, uma atriz com um desempenho remarcável que lembro agora foi Julie Andrews em VICTOR OU VICTORIA, no papel de uma mulher interpretando um homem, por sua vez interpretando uma mulher. Na televisão, Bruna Lombardi fez GRANDE SERTÃO: VEREDAS, e foi até diferente para mim, à época, ver alguém com uma imagem tão “certinha” como Tony Ramos interpretando o personagem que interpretou e o ator o fez maravilhosamente. Ainda que não seja muito fã da Claudia Raia, ainda na televisão, ela teve uma trabalho maravilhoso interpretando a transexual Ramona, em AS FILHAS DA MÃE; ela deu toda a delicadeza e, principalmente, desempenhou o papel com grande dignidade. E ainda no cinema, cito Felicity Huffman, com TRANSAMÉRICA, e Glenn Close, por ALBERT NOBBS, mas certamente há vários outros exemplos.

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