FIT Rio Preto abraça novos tempos sem abrir mão de 54 anos de tradição no teatro

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

Enviado especial a São José do Rio Preto (SP)*

Era 1969. O Brasil estava mergulhado em um dos períodos mais ferozes da ditadura militar, tempo no qual o teatro sofria forte perseguição. Foi neste ano que o ator e dentista Humberto Sinibaldi Neto e a jornalista, escritora e historiadora Dinorath do Valle, dois apaixonados pelas artes cênicas, criaram em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, um dos mais longevos festivais de teatro do Brasil: o FIT Rio Preto – Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. O evento celebra 54 anos de existência entre 20 e 29 de julho, com realização da Prefeitura de São José do Rio Preto em parceria com o Sesc São Paulo por meio de sua unidade rio-pretense, o Sesc Rio Preto.

Especialmente convidado pela direção do evento, o Blog do Arcanjo acompanhou o começo do FIT Rio Preto, que vai até 29 de julho, com 30 espetáculos de 4 países — só nos quatro primeiros dias foram 16 mil pessoas. Em sua programação, pincelada pela diversidade, o evento abraça os novos tempos, com palcos mais plurais. Contudo, sem abrir mão da tradição dos 54 anos de farta história de pioneirismo nas artes cênicas nacionais.

O Festival começou estudantil, para logo tornar-se nacional. Mais tarde, ganhou companhias de todo o mundo, ganhando a alcunha de internacional. O objetivo inicial era formar os artistas locais, criando referências e assim fomentar o teatro na cidade, o que deu certo, com Rio Preto logo tornando-se bastião cultural no Estado de São Paulo, lançando talentos que ganham os palcos nacionais ano após ano.

Só para ficar em alguns exemplos, nomes como Elba Ramalho e Denise Stoklos participaram do Festival de Rio Preto bem antes de serem consagradas. Em seu painel de júri também já estiveram críticos renomados do passado, como Décio de Almeida Prado, fundador da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), instituição da qual o autor deste texto, Miguel Arcanjo Prado, é membro e foi vice-presidente.

Emocionado, 54 anos depois da primeira edição, Humberto Sinibaldi Neto pôde presenciar, no último dia 20 de julho, na Represa, a abertura de mais uma edição do FIT Rio Preto. Foi ele quem, ao lado do secretário municipal de Cultura e diretor do Festival, Pedro Ganga, entregou ao mineiro Eduardo Moreira, do Grupo Galpão, responsável pelo primeiro espetáculo, De Tempo Somos, o lendário Troféu São José Risonho, criado pela amiga Dinorath do Valle, que morreu em 2004. A cidade também acaba de reinaugurar reformado o Teatro Municipal Humberto Sinibaldi Neto, que leva o nome do fundador do FIT Rio Preto.

O público, na abertura, ainda se emocionou bastante com a imagem de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que morreu no começo do mês, projetada no telão, quando esteve em Rio Preto na lendária montagem do Teatro Oficina para Os Sertões.

A noite ainda contou com protesto da classe artística rio-pretense por 1% do orçamento do município para a cultura local, manifestação que se repetiu nas peças de artistas da cidade, como Homem do Princípio ao Fim, da Cia Apocalíptica.

Novos corpos em cena

A efervescência e constante troca entre grupos teatrais que marca a história de Rio Preto, que já foi competitivo e bem mais glamouroso no passado e atualmente funciona como mostra, mantém novas versões nos dias atuais.

Os grandes nomes, como Cleyde Yáconis, Maria Alice Vergueiro e Beatriz Segall, deixaram marcas indeléveis. Atualmente, a programação dá mais espaço a discursos insurgentes e novos corpos que pedem passagem nos tablados nacionais.

Em 2023, a curadoria do FIT Rio Preto apontou a “escuta” como eixo central, focando parte da programação no teatro feito pelos chamados “corpos dissidentes”.

Alguns desses corpos conseguiram ressignficar espetáculos.

Foi o caso da atriz e performer local Christina Martins, que deu novas matizes à peça argentina de rua Efectos Especiales FX, da Cia. Krapp, de Buenos Aires, nas ruas do centro de São José do Rio Preto, como artista convidada pelos diretores argentinos Luciana Acuña e Alejo Moguillansky. A obra cria uma tomada em tempo real de uma cena de travelling nas ruas das cidades que visita, misturando cinema, teatro e dança.

“Sou atriz de Rio Preto, da Cia Cênica e de outras companhias da cidade. Foi incrível participar dessa história. Por mais que tenha sido uma pesquisa lá da argentina, fala muito do que a gente vivenciou e vivencia aqui no Brasil. A Argentina fez um belíssimo convite de trazer as pessoas de Rio Preto para dentro do espetáculo deles”, disse Christina Martins ao Blog do Arcanjo, ainda sob a emoção de ser ovacionada pelo público. Para a atriz, sua presença traz novos significados à performance portenha callejera.

“Meu corpo não é uma metáfora, é a realidade dos corpos trans e travestis que estão morrendo e vivendo e buscando formas de reagir a esses tiros, a essas palavras de ofensa. Quando um corpo travesti cai e se levanta, ele está mostrando uma determinação em estar vivo. É isso que meu corpo tenta trazer neste espetáculo”.

Christina Martins
Atriz de Efectos Especiales (Argentina) no FIT Rio Preto 2023

Para o diretor argentino Alejo Moguillansky a experiência de troca com a Rio Preto durante as duas sessões lotadas foi “excelente”. Questionado pelo Blog do Arcanjo sobre a importância de pontes culturais que um festival como o FIT Rio Preto produz, ele diz que “é preciso trabalhar muito” ações deste tipo, e que “é impossível não sentir uma fraternidade, uma irmandade”. O Blog do Arcanjo só faz uma observação: uma telona gigante de cinema, em vez das diminutas TVs de LED, teria deixado o fim da montagem bem mais impactante, quando o público assiste à tomada na qual fez figuração de luxo.

FIT Rio Preto promove encontros

Thiago Freire, gerente do Sesc Rio Preto ressalta a forma como a população abraça o FIT Rio Preto. “É muito rico o modo como a cidade, em seus equipamentos públicos, praças, ruas e nas instalações do Sesc, mobiliza-se para receber artistas e promover o acesso das pessoas a uma programação sempre inovadora e dinâmica”, declara. Para o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, “o FIT Rio Preto representa a manutenção de um projeto longevo e consolidado de fomento às artes cênicas que reside, entre outros fatores, na renovada capacidade de mobilizar e articular as diversas instâncias da sociedade em torno da sua realização e que, ao ativar as múltiplas redes socioeconômicas e culturais da cidade e em seu entorno, promove a ocupação de espaços públicos e privados com uma programação consistente e contemporânea”.

Prefeito de São José do Rio Preto, Edinho Araújo reafirma a importância histórica do FIT Rio Preto e da valorização de sua trajetória de mais de meio século, impulsionando a cadeia da economia e da indústria criativas.

O FIT faz parte do patrimônio cultural de Rio Preto e é um evento que coloca a cidade entre os mais importantes festivais de artes cênicas do Brasil. O Festival mobiliza a comunidade e a classe artística local, movimentando diferentes setores da economia e revelando o potencial do segmento criativo para a cidade e para o País.”

Edinho Araújo
Prefeito de São José do Rio Preto

Diretor do FIT Rio Preto, o secretário de Cultura de São José do Rio Preto, Pedro Ganga, lembra que ouvir os novos atores sociais é papel do evento.

Assim como outros festivais de teatro, o FIT Rio Preto é exemplo da força da escuta na cultura e na arte. É vitrine para o cenário teatral, reunindo produções variadas de diferentes países e regiões, que permite a troca de experiências entre artistas e público.”

Pedro Ganga
Diretor do FIT Rio Preto e secretário municipal de Cultura de São José do Rio Preto

Pelo jeito, é possível abrir espaço ao novo sem deixar de valorizar os pioneiros que abriram os caminhos para o teatro. Só assim será possível construir mais meio século de história do FIT Rio Preto, mantendo o festival no posto de um dos mais importantes do Brasil.

*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do FIT Rio Preto.

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Jornalista cultural influente e respeitado no Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra o júri de Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prêmio Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil de Curtas. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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