★★★★ Crítica: Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar cria reflexão sobre corpo negro e se destaca no Festival de Curitiba
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
★★★★
Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar
Avaliação: Muito Bom
ENVIADO ESPECIAL AO FESTIVAL DE CURITIBA*
Qual o valor do corpo negro em nossa sociedade? Os males da escravidão realmente ficaram para trás ou estão aí camuflados em novas relações ou mesmo escancarados nos moldes da velha exploração que por aqui vigorou e vigora por 500 anos de triste história que se repete em um looping eterno? Essas perguntas pairam sobre a cabeça do público que assistiu às duas esgotadas sessões de Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar, da companhia paulistana O Bonde, no Sesc da Esquina, no 31º Festival de Curitiba, neste último fim de semana.
O espetáculo nasceu como peça-filme nos tempos de pandemia e levou o Prêmio APCA de melhor espetáculo neste formato digital, em acertada escolha do júri integrado por este crítico.
A obra tem como inspiração um fato real: a história de um padre que escravizou crianças negras em sua fazenda e as tratava por números, em mais um triste episódio de desumanização de corpos negros e que ecoa nas recentes notícias de escravidão pelo Brasil, até mesmo em grandes eventos em grandes metrópoles, como recentemente no Lollapalooza.
O elenco se destaca pela intensidade com que está no palco, em entrega visceral, cada um com sua matiz e formando um conjunto coeso: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteve, todos nomes da nova geração do teatro negro que vem galgando cada vez mais espaço na indústria cultural paulista e brasileira.
O grupo convidou outro nome representativo da cena teatral paulistana para realizar sua primeira direção fora de seu grupo original, o já consagrado Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Roberta Estrela D’alva, artista também conhecida do grande público por apresentar o Manos e Minas na TV Cultura, programa que legitimou na grande mídia a cultura do rap e do hip hop brasileiro.
Roberta faz uma grande direção em Desfazenda, valorizando os atores em cena e dialogando com a direção musical de Dani Nega de forma intensa, e fazendo o lírico texto escrito por Lucas Moura crescer e ganhar uma maior comunicabilidade teatral.
Outro destaque é o forte diálogo da direção com a talentosa iluminação do espetáculo, uma das mais propositivas dos últimos tempos, desenhada por Matheus Brant, com montagem de luz de Alírio Assunção e Matheus Espessot. A montagem ainda tem participações afetivas de Grace Passô e Negra Rosa, figuras expressivas da comunidade negra artística, com voz em off.
Desfazenda construiu importante diálogo com o público curitibano, que aplaudiu de forma efusiva e também se emocionou com a história contada em camadas como peças de um indecifrável quebra-cabeças.
Em uma cidade majoritariamente branca e ainda marcada fortemente pelo racismo como Curitiba, o recado de Desfazenda ecoou com força desconcertante. Ao fim das sessões, muitos curitibanos choraram, se comovendo fortemente com aquela realidade muitas vezes vista como distante, agora presente e com voz própria no maior festival de artes cênicas da América Latina.O final-oferenda por uma realidade futura mais igualitária para o povo preto é de uma beleza rara. Que ele se cumpra. Queira Deus, Oxalá.
★★★★
Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
*O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Curitiba.
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Jornalista cultural influente e respeitado no Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra o júri de Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de São Paulo, Prêmio Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil de Curtas. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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