★★★★ Crítica: Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina mostra atualidade do clássico de Ben Jonson com a Bendita Trupe
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina ★★★★
Avaliação: Muito Bom
Por mais que haja evoluções no comportamento humano, a essência da espécie nunca muda. Sobretudo, quando o assunto é insaciável ganância. E isso fica evidente quando assistimos à montagem de Volpone, um texto escrito há 500 anos e que, infelizmente, permanece mais atual do que nunca, sobretudo no Brasil de horror dos últimos tempos.
A Bendita Trupe retoma a obra icônica de um dos grandes dramaturgos do teatro mundial, o inglês Ben Jonson (1532-1637), contemporâneo de William Shakespeare que não teve a mesma consagração do colega, apesar de ser muito cultuado e montado no Reino Unido e possuir uma obra potente.
Na realidade, trata-se de uma nova proposta de encenação para esta “comédia da morte”, como definiu o crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000). Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina é uma montagem inédita dirigida por Johana Albuquerque, que revisita a obra que deu fôlego novo à companhia em tempos tenebrosos.
O texto foi encenado pela Bendita Trupe durante a pandemia, em 2020, no estacionamento do Teatro Arthur Azevedo, no espetáculo Protocolo Volpone – Um Clássico em Tempos Pandêmicos, peça já histórica pelo pioneirismo na resistência do teatro em meio àquele cenário de horripilantes incertezas. Naquele momento, a peça celebrou as duas décadas de atividade da companhia e rendeu, merecidamente, indicação ao Prêmio APCA de Melhor Espetáculo.
Agora, a obra está de volta para reencontrar, sem máscaras, o calor do público, com os atores livres, leves e soltos no palco.
O objetivo é narrar de modo farsesco a história de um golpista de Veneza chamado Volpone, defendido com bravura por Daniel Alvim, que finge estar à beira da morte. Com a ajuda de seu servo, Mosca, interpretado pelo ágil Mauricio de Barros, tenta dar golpes nos amigos da elite veneziana para conquistar ainda mais dinheiro.
Ao revisitar esta comédia clássica, a Bendita Trupe faz uma encenação que remete às companhias teatrais brasileiras de meados do século 20, que conseguiam transpor os textos clássicos ao coração do público. É importante este papel de resgate da memória de nosso teatro, sobretudo em tempos tão fugazes e desmemoriados.
A montagem, merecidamente, presta tributo ao TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, que montou Volpone em 1953 sob direção de Ziembinski, quando recebeu a já mencionada crítica de Décio de Almeida Prado, um dos fundadores da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual este crítico que vos escreve é membro e foi vice-presidente, posto também ocupado pelo Prado do passado.
O grande desafio da encenação de 2023 é fazer o texto de época conversar com o aqui e agora. E Johana Albuquerque consegue esta construção, com a ajuda dos “cacos” do elenco, que atualizam o texto e até mesmo algumas quebras na quarta parede, como ensinou Bertolt Brecht (1898-1956).
Claro que a avareza e cobiça humana, que continuam firmes e fortes, sobretudo naqueles que estão nas esferas do poder, garantem esta comunicação imediata, já que o público reconhece imediatamente tais comportamentos e logo associa os mesmos às referências de hoje.
Para que uma comédia funcione em sua potência máxima, é fundamental que os atores em cena consigam aquele tom matemático que este tipo de espetáculo pede, sem cair no perigoso caminho do histrionismo gratuito e antinatural. Ser um pouco de ator-vedete neste tipo de peça não faz mal, muito pelo contrário, costuma ser excelente qualidade. E, claro, não se pode subestimar a inteligência do espectador.
Sendo assim, este crítico prefere os momentos do espetáculo em que os atores confiam mais no texto e atuam de forma mais natural e menos empostada, deixando aquela declamação que se associou a este tipo de teatro de lado.
Quem mais se destaca no elenco, justamente por possuir essa deliciosa naturalidade, é Ester Laccava, atriz com farto carisma cênico e excelente tempo para a comédia. Ester garante ao público boa parte das gargalhadas.
Ao seu lado estão nomes importantes dos palcos paulistanos, como Fernanda D’Umbra, Joca Andreazza, Luciano Gatti, Pedro Birenbaum, Vanderlei Bernardino e Sergio Pardal.
Algumas questões abordadas pelo espetáculo, sobretudo em relação às mulheres, como a delicada cena de estupro dividida pelas atrizes Cris Lozano e Vera Bonilha, que se alternam na mesma personagem, ganham novas possibilidades de leituras, que dialogam com a luta feminista e o silenciamento das mulheres, tão denunciado nos dias de hoje, transformando o que era riso em denso drama, o que confere peso à montagem.
Mesmo sabendo que esta encenação utiliza a versão de Volpone mais enxuta do austríaco Stefan Zweig (1881-1942) dos anos 1920, adaptada por Marcos Daud, este crítico intui que uma leve enxugada no tempo de duração do espetáculo faria com que o mesmo ganhasse mais ritmo e conquistasse ainda mais o coração do público.
Para não deixar de fora o time criativo, o cenógrafo Julio Dojcsar apresenta uma cenografia multifascetada, que ambienta de forma simples e eficaz as cenas com adereços perspicazes, enquanto que a figurinista Silvana Marcondes impõe um diálogo no tempo, que é enriquecido pelo visagismo de Leopoldo Pacheco, artista dos palcos que se destaca também nos bastidores. A obra ainda tem direção musical Pedro Birenbaum, que contribui com o ritmo da peça — no começo, o elenco até canta de forma brechtiana. Por fim, a iluminação de Wagner Pinto traduz sentimentos que as cenas constroem, mas poderia ganhar ainda mais potência se fosse mais recortada e menos aberta em determinados momentos. Ainda estão no time criativo Cacá Toledo na atenta assistência de direção e Gustavo Sanna na dedicada produção.
Volpone, a Raposa e as Aves de Rapina faz o público entrar em contato com um clássico do teatro, oferecendo uma teatralidade típica da farsa para colocar as cabeças para refletirem sobre os limites da ganância e da ética humana, ensinando-nos que quem se acha espertinho demais acaba sendo passado para trás. E fazer o público pensar, em tempos tão bitolados, é das missões mais nobres do humor e do teatro como um todo.
Por fim, este crítico reitera que Volpone realiza temporada gratuita no Teatro Arthur Azevedo, na Mooca, em São Paulo, até 2 de abril, de quinta a sábado, 21h, e domingo, 19h. E o melhor: com entrada gratuita e ingressos retirados na bilheteria uma hora antes de cada uma das 16 sessões programadas. A peça é fomentada pelo ProAC ICMS Direto do Governo do Estado de São Paulo e tem também parceria com Prefeitura de São Paulo, o que possibilitou sua realização. Não deixe de prestigiar e se aventurar no passado que é a cara do presente.
Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina ★★★★
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
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Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina, com Bendita Trupe
Temporada: 9 de março a 2 de abril, de quintas a sábados, às 21h, e aos domingos, às 19h
Teatro Arthur Azevedo – Avenida Paes de Barros, 955 – Alto da Mooca, São Paulo
Ingressos: Grátis, distribuídos 1h antes do espetáculo
Debates: 12, 19, 26 de março e 2 de abril, após a apresentação
Duração: 100 minutos
Classificação: 12 anos
Capacidade: 349 lugares
Acessibilidade: Teatro acessível a pessoas com mobilidade reduzida
Blog do Arcanjo mostra imagens da peça Volpone, A Raposa e as Aves de Rapina pelo olhar do fotógrafo Rafa Marques
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Um dos jornalistas culturais mais respeitados do Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Cultura pela ECA-USP, bacharel em Comunicação pela UFMG e crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Foi eleito um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se por três vezes. Recebeu a Medalha Mário de Andrade, maior honraria nas letras do Governo do Estado de São Paulo. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. É presidente do júri do Prêmio Arcanjo e integra o júri do Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Guia da Folha, e Canal Brasil de Curtas. Recebeu ainda o Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil e Prêmio Leda Maria Martins.
Foto: Edson Lopes Jr.
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