Crítica | Tudo assombra ao criar paralelo inteligente com o caótico Brasil de hoje ★★★★

A atriz Julia Lemmertz na peça Tudo – Estado, Arte, Religião – Foto: Lina Sumizono – Festival de Curitiba – Blog do Arcanjo

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo

Tudo ★★★★

Quem não sabe que a peça Tudo – Estado, Arte, Religião foi escrita pelo argentino Rafael Spregelburd poderia pensar tratar-se de um texto brasileiríssimo. Afinal, o espetáculo se encaixa com perfeição ao momento atual vivido pelo Brasil, no qual a arte é demonizada e a religião se mistura desavergonhadamente com o Estado em velocidade estonteante.

Parece coisa da Idade Média e que a suposta separação entre Igreja e Estado, oriunda da Proclamação da República no fim século 19, teria resolvido, mas só é o Brasil às vésperas de um pleito definitório. Cenário no qual seres livres pensantes se assustam diante dos rumo às trevas de grande parte da população, ignorando solenemente todos os avanços da Idade da Luz. E tal rumo não é exclusividade do Brasil, em um mundo cada vez mais manipulado por algoritmos comprados.

Com mão cuidadosa e sofisticada, além de pitadas de pós-dramático aliado ao teatro épico, Guilherme Weber dirige a excelente dramaturgia, apostando no time de bons atores que tem para o jogo. Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito se revezam como em uma partida cênica dividida em três tempos, ou melhor, em três atos.

Os atores Vladimir Brichta e Dani Barros em cena de Tudo – Foto: Lina Sumizono/Festival de Curitiba – Blog do Arcanjo

Cada qual dos atos focado em um dos três temas abordados pela obra, oriundos de três perguntas: Por que todo Estado se torna burocracia? Por que toda arte se torna negócio? Por que toda religião se torna superstição? Dá gosto de ver os atores passeando por distintos personagens e se divertindo entre si — e ao público também — no jogo da contracena, verdadeira alma do teatro.

A refinada produção da Quintal Produções, de Verônica Prates — também diretora assistente –, Valencia Losada e Thiago Miyamoto, ainda tem iluminação futurista de Renato Machado, figurinos elegantes da experiente Kika Lopes e cenografia diminuta de Dina Salem Levy.

Os atores Márcio Vito, Cláudio Mendes e Julia Lemmertz em cena de Tudo – Foto: Lina Sumizono/Festival de Curitiba – Blog do Arcanjo

Tudo na direção artística leva os olhos do público para o trabalho dos atores no palco. O que é um grande acerto.

Há evidente trabalho de preparo corporal dos artistas, assinado por Toni Rodrigues, além de trilha original de Rodrigo Apolinário com música original por Cláudio Gaya, ambientando os conflitos das três fábulas apresentadas.

Apesar dos momentos de leveza que a típica ironia dramática argentina nos traz, Tudo assombra o espectador com seus questionamentos filosóficos, criando uma comparação inevitável com o triste Brasil contemporâneo, à beira da escolha que pode nos trazer novamente uma democracia civilizada ou nos jogar de vez no abismo da barbárie e da ignorância perversa.

Tudo ★★★★ Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado

Sesc Bom Retiro. Até 9/10/2022. Retire seu ingresso.
Sesc Guarulhos. 14 a 16/10/2022. Retire seu ingresso.
Belo Horizonte. 12 e 13/11/2022.

Editado por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige Blog do Arcanjo e Prêmio Arcanjo. Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Cultura pela USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, Folha, Ed. Abril, Huffpost, Band, Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra os júris: Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio do Humor, Prêmio Governador do Estado, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio DID, Prêmio Canal Brasil. Venceu Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio ANCEC, Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado.
Foto: Rafa Marques
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