Crítica | Genderless, o programa de combate Guttervil

Guttervil em Genderless – Foto: Henrique Mello – Blog do Arcanjo

Genderless
Crítica por Marcio Tito*

Especial para o Blog do Arcanjo

A premissa do espetáculo Genderless é apresentar o discurso de uma identidade inscrita na causa e em uma vida “sem gênero”.

Teatralizando o debate, emprestando ao tema os artifícios do teatro performativo, a peça-tese ganha ares dramáticos e transcende a mera “comunicação” das pautas de uma vida e de uma história “genderless”.

Gutervill (performer), Marcia Zanelatto (autora) e Samira Lochter (diretora), discursivamente à frente de Genderless, elaboram em cena o questionamento que o espírito do tempo presente não faria a menor questão de elaborar para e contra si, afinal, a quem realmente interessaria questionar as estruturas que mantêm sólidos o capitalismo, o patriarcado e toda sorte de “salve-se quem puder” promovido pelo liberalismo global?

Teria dito Ezra Pound: “Artistas são como antenas da raça, recebem em primeira mão aquilo que adiante chegará às sociedades”, ou seja, captam um sentimento de futuro e catalisam tal percepção e intuição em mecânica e forma de obra de arte.

E alguém duvida que Genderless não atrai o olhar do presente e o transmuta em uma pertinente especulação acerca das coisas ainda não ditas e ainda não vistas?

A cena ganha luz e forma quando uma pessoa alcança o palco. Carrega consigo uma fuga e uma mochila. Projeções tomam conta das paredes e do cenário — trata-se da representação de alguém que não trouxe uma arma, mas, no contexto da obra, é marginal, apresenta risco e vive “fora da lei”.

Estão perseguindo alguém que tem cabelos claros, tatuagens, braços, pernas, pés e mãos, olhos, nariz e boca, contudo, o que perseguem, em última análise, é justamente o que não está presente naquele corpo — perseguem a determinação de uma ausência, ou, no reverso, a determinação de uma interrogação em primeira pessoa.

Perseguem a falta de um nome e também o desejo de ter um nome. E, então, descobrimos que é “crime” chamar por algum outro termo quem a maioria convencionou chamar por um nome só. Que doentia colonização do outro faz que seja tão urgente adequar o outro ao dicionário da maioria?

Mas ainda que Genderless surja pela necessidade de combater seus perseguidores, como ótima estratégia, o trabalho elege interessantes expedições formais capazes de cooptarem olhares para o expediente de sua causa.

A encenação sonora (Henrique Mello) e a encenação imagética (Thiago Capella) compõem com bem-vinda sofisticação uma ótima argumentação subjetiva. A boa qualidade técnica e o bom gosto implícito às escolhas formais dão conta de somar ao mesmo tempo que a energia do discurso, e isto livra a encenação de visitar os “modus operandi” de uma palestra encenada ou colóquio teatralizado; vemos, em Genderless, teatro (e isso é bastante determinante para a recepção e produção de sentido da obra).

O texto de Marcia Zanelatto ganha ao entregar espectros. A falta de determinismo formal parece ter permitido que a diretora criasse situações dramáticas capazes de formularem uma ampliação das palavras-chave que o texto dispara com despreocupada construção, e é justamente neste intermezzo entre a direção e a dramaturgia que Guttervil programa a o seu dispositivo de cena.

Uma positiva atmosfera de combate, na interpretação de Guttervil, contradiz toda a estrutura. Quem foge, de modo geral, não trabalha de frente para a plateia, não faz live e não ilumina uma clareira. Quem foge, de modo geral, não firma os dois pés e declara sua própria liberdade. E é muito instigante perceber que a sombra de Guttervil não está recolhida em uma assustada percepção dos riscos de sua experiência. Guttervil está presente, e se houve recuo, como num soco, foi um recuo para bater mais forte, com maior impulso.

É um trabalho de imensa importância e positiva maturidade, uma vez que respeita e se utiliza da plataforma do teatro para de fato criar um discurso conjunto ao discurso formal das artes cênicas.

Curiosamente, neste ponto de contato entre a vida e a obra, encontramos também uma força capaz de nos dizer que a sociedade, esteja em qual encruzilhada estiver, somente encontrará paz e sucesso quando souber reunir e um só lugar de promessas os mais diversos grupos e as mais diversas contradições.

Impossível não sentir desejo de acompanhar a próxima investigação teatral de Guttervil acerca deste assunto tão expressivo quanto urgente e relevante.

Genderless
Crítica por Marcio Tito*
Especial para o Blog do Arcanjo

*Marcio Tito é dramaturgo e diretor teatral, além de editor, crítico e entrevistador no site Deus Ateu. Ele escreveu esta crítica a convite do Blog do Arcanjo@marciotitop 
Foto: Edson Lopes Jr.

Genderless

Ficha técnica Texto: Marcia Zanellato Direção: Samira Lochter Performance: Guttervil Direção de arte: Thiago Capella Designer gráfico: Danilo Amaral Trilha sonora: Henrique Mello Figurino: Coletivo de Dois Produção: Linha 3 Produções Culturais e Produtora 2por1


Serviço
Espetáculo: Genderless – Um corpo fora da leiGênero: Performance documentalApresentações Presenciais
De 04 a 25 de Julho – Segundas-feiras, às 21hDuração: 30 minutos
Lotação: 30 lugaresIndicação: LivreLocal: SP Escola Teatro (Praça Franklin Roosevelt, 210 – Bela Vista, São Paulo)Ingressos via Sympla – www.sympla.com.br/spescoladeteatrodigital (Vendas somente online)Valores: R$20Inteira / R$10Meia

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Blog do Arcanjo mostra quem aplaudiu estreia de Genderless, com Guttervil, na Sala Alberto Guzik da SP Escola de Teatro

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Um dos jornalistas culturais mais respeitados do Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Cultura pela ECA-USP, bacharel em Comunicação pela UFMG e crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo PodFoi eleito um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se por três vezes. Recebeu a Medalha Mário de Andrade, maior honraria nas letras do Governo do Estado de São Paulo. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. É presidente do júri do Prêmio Arcanjo e integra o júri do Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Guia da Folha, e Canal Brasil de Curtas. Recebeu ainda o Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil e Prêmio Leda Maria Martins.
Foto: Edson Lopes Jr.
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