Crítica | Sede busca sentido da vida ao navegar por sonhos perdidos

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Fotos EDSON LOPES JR.
@edson_lopes_jr
O que a gente faz com os sonhos da juventude que, muitas vezes, os caminhos da vida interrompem com a imposição da realidade e, sobretudo, da necessidade de sobrevivência em um mundo cada vez mais feroz e menos poético? E como dar marcha à ré quando nos vemos, mesmo sem querer, em um caminho de dor?
Estas perguntas retóricas parece pairar sobre o espetáculo Sede, produção do ator Felipe de Carolis, em cena ao lado de Marcelo Várzea e Luna Martinelli, sob direção de Zé Henrique de Paula com colaboração de Junior Docini. A obra pode ser vista no Tucarena, em São Paulo, às sextas e aos sábados às 20h, e aos domingos, às 18h, até 12 de dezembro (retire seu ingresso). A montagem retoma sua temporada que foi interrompida pela pandemia, em março de 2020.
O espetáculo foi escrito em 2007 pelo libanês-canadense Wajdi Mouawad (1968), com colaboração de Benoit Vermeulen. O título original foi Assoiffés (em francês, “com sede”) e a tradução para o português é de Angela Leite Lopes. Desde 2016 diretor do Théâtre National de la Colline, em Paris, ele é o dramaturgo da aclamada Incêndios (2003). O texto foi sucesso no Brasil em 2014 com Marieta Severo encabeçando o elenco ao lado de Felipe de Carolis, produtor tanto de Incêndios quanto também de Céus (2016) e de Sede, trilogia de Mouawad montada por Carolis no Brasil.

Sede traz o antropólogo forense Boone (Marcelo Várzea). Este é incumbido de determinar a causa da morte do jovem estudante Sylvain Murdoch (Felipe de Carolis). O rapaz não encontra mais razão de viver, e o antropólogo o conheceu no passado.
O corpo do jovem é encontrado no fundo de um lago, abraçado à sua jovem musa Noruega (Luna Martinelli), outra cujo sentido da vida parece ter sucumbido.
Teria Murdoch morrido por acidente ao patinar no gelo e cair nas gélidas águas ou foi um suicídio? Nesta difícil missão de estabelecer o fato, o investigador acaba indo ao encontro das expectativas frustradas de seu próprio passado juvenil e passando sua própria vida a limpo.
A obra é uma grande metáfora sobre não deixar a feiúra emergir de dentro de nós,. Ela coloca em perspectiva o que fazemos com aquilo que fomos ou sonhamos um dia. É óbvio que a existência impõe seu ritmo e suas necessidades, mas, a questão parece ser: como não nos violentarmos por completo diante do jogo da vida?
O texto de Mouawad aposta em monólogos narrativos dos três personagens e praticamente ignora a ação, o que pode fazer em alguns momentos que a atenção do espectador se disperse durante os quase 100 minutos de espetáculo. Afinal, não trata-se de um espetáculo fácil de ser digerido. Muito pelo contrário. É uma peça densa.

O diretor Zé Henrique de Paula, com colaboração de Junior Docini — que assumiu a montagem nesta retomada —, busca algumas soluções para sacudir um pouco o excesso de narração e despertar o público. Como na escolha da cenografia circular movediça de Bruno Anselmo e com projeções de um polvo gigante, representando a feiúra à espreita. Outro respiro são as belas canções interpretadas por Felipe de Carolis. Aliás, o ator demonstra evidente estudo técnico de colocação de voz, com Jonatan Harold tocando composições de Fernanda Maia em um delicado piano.
Mas, o fato é que a melancolia paira irremediavelmente sobre os personagens. Eles já não conseguem encontrar a beleza desta vida. Cada vez mais, são tragados pela metáfora da feiúra — aquelas nossas frustrações que vamos despejando em um quarto interno que, quando lotado, ocupa tudo. A fria iluminação de Fran Barros reforça este estado letárgico.
Há ainda uma crítica feroz à sociedade automatizada, mergulhada no vazio tecnológico que leva à ansiedade e à depressão e onde, na falta da beleza do novo e do improvável, tudo se funde em um marasmo de repetições. Tudo isso com pitadas de metalinguagem que homenageia o próprio teatro.
Por mais que não haja muito jogo de cena entre os personagens, os atores estão entregues — e não deve ser nada fácil encarar uma peça com tal estado melancólico após tudo que vivemos nos últimos tempos.

Felipe de Carolis mergulha no vazio de seu verborrágico Murdoch. É como se o personagem, na ânsia de tanto dizer, acabasse tragado pelas próprias palavras, rumando ao seu triste e precipitado fim. Marcelo Várzea também abraça seu analítico antropólogo, construindo uma bela alegoria das negociações que precisamos fazer para seguir em frente e não desistir. Para completar o trio, Luna Martinelli brilha em seu retorno aos palcos, atriz de camadas profundas como um lago turvo — é sempre um alento vê-la em cena.
É incontestável que grandes catástrofes afetam o modo como a humanidade se relaciona com a vida, com a morte e com a própria arte. Foi também perceptível nos últimos tempos a importância da arte em nossas vidas como motor de saúde mental. E, diante do dilúvio fúnebre que nos assolou nos últimos dois anos, tudo foi realocado em nova perspectiva. Inclusive a falta de relevância para certos conflitos burgueses.

Assim, ver Sede ao fim de 2021 é uma nova experiência. Afinal, vimos milhares lutando para sobreviver nos últimos tempos, muitos dos quais, infelizmente, sem sucesso. Deste modo, os conflitos apresentados na obra são encarados a partir de um novo ângulo. E uma conclusão paira na cabeça deste crítico ao sair do espetáculo: precisamos todos encontrar o sentido da vida e seguir em frente, recuperando a poesia da vida. Inclusive o próprio teatro, pois o mergulho na dor não faz bem a ninguém. E é preciso recuperar a sede pela vida.
Sede, de Wajdi Mouawad, direção Zé Henrique de Paula
Avaliação: Bom ✪✪✪
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Edson Lopes Jr
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. 95 min. 16 anos.
Onde: Tucarena – Rua Monte Alegre, 1024 (entrada pela Rua Bartira), Perdizes, São Paulo. Tel. 11 3670.8455.
Quanto: De R$ 30 a R$ 70 (retire seu ingresso)
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Blog do Arcanjo entra no camarim da peça Sede










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Editado por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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