Andrea Tonacci foi o camaleão do cinema brasileiro

O cineasta Andrea Tonacci (1944-2016) - Fotos: Nereu Jr./Universo Produção

O cineasta Andrea Tonacci (1944-2016) – Fotos: Nereu Jr./Universo Produção

Por Marcelo Ikeda*
Especial para o Blog do Arcanjo do UOL

Nascido na Itália, o brasileiro Andrea Tonacci, que morreu nesta sexta (16), aos 72 anos, é um dos grandes nomes do “cinema de invenção” realizado neste país. Permanece, como cineasta e sobretudo como homem, como um artista que nunca se deixou seduzir pela vaidade ou pelo poder, que nunca realizou concessões para estar em evidência. Fez assim muito menos filmes do que deveria, mas os que conseguiu realizar permanecem como marcos do cinema brasileiro.

Tonacci começou sua carreira como mais próximo ao chamado “cinema marginal”, com o curta “Olho por Olho” (1966) e seu antológico longa-metragem “Bang Bang” (1971). Presente em quase todas as listas dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, o filme possui uma radical linguagem de desconstrução narrativa, dialogando com o estado de distopia do país no início dos anos 1970, mas, ao mesmo tempo, subvertendo sua suposta apatia pelo prazer em lidar de forma inventiva com os códigos do cinema. Cenas como a de Pereio discutindo com um motorista de táxi, uma cigana dançando no terraço de um prédio, ou ainda, a de Pereio se barbeando com uma máscara de macaco tornaram-se momentos emblemáticos de todo um cinema brasileiro.

O filme passou a ser a coroação e o martírio de Tonacci desde então. Porque se, de um lado, marcava a presença do diretor na história do cinema brasileiro, por outro, Tonacci passou a ser visto como “o autor de ‘Bang Bang’”, ao invés de simplesmente “autor”. Depois do mitológico “Bang Bang”, Tonacci teve que esperar 35 anos para lançar um novo filme de ficção.

Camaleão

Mas, nesse intervalo, o diretor nunca se manteve inativo e, como um camaleão que muda de cor para sobreviver às ameaças de seu habitat natural (e a megalópole do pequeno cinema brasileiro é muitas vezes mais árida do que a caatinga plena), foi buscar alternativas para o prosseguimento de seu projeto de cinema, fugindo dos estereótipos do “cineasta marginal” que tanto o perseguiam desde a estreia de “Bang Bang”. Já havia realizado “Blá Blá Blá”, um dos primeiros filmes sobre o complexo tema de como os meios de comunicação perpetuam um discurso de massa. Em seguida, “Interprete Mais, Pague Mais” se concentra nas turbulências em torno dos bastidores de uma peça de teatro, em processo de ser encenada. Dedicou-se à questão indígena em “Conversas no Maranhão” e na série “Os Arara”.

“Serras da Desordem” é um marco do cinema contemporâneo brasileiro ao mesclar de forma inventiva ficção e documentário para retratar a história do índio Carapiru, que, ao ver sua tribo dizimada por um ataque às suas terras, acaba entrando em contato com o “mundo dos brancos”. Por meio de Carapiru, Tonacci promove um percurso pela própria trajetória de destruição de um Brasil interior em nome dos valores do “progresso” e do “desenvolvimento”.

O reconhecimento da estatura de “Serras da Desordem” fez ressurgir o nome de Tonacci ao cenário do cinema brasileiro. O rótulo de “cineasta marginal” e “autor de um único filme” se dissipava, abrindo novas oportunidades para Tonacci. No entanto, todos os meandros e dificuldades da burocracia de financiamento ao audiovisual no país dificultavam para Tonacci realizar um novo projeto. Conseguiu realizar apenas mais duas obras: o curta “Benzedeiras de Minas” e o extraordinário média “Já Visto Jamais Visto”, que pode ser lido como uma espécie de epíteto de sua obra.

Para quem teve a honra de conhecê-lo pessoalmente, a elegância, a inteligência, a argúcia de seu espírito crítico, e sobretudo sua generosidade se destacavam ao longe. Uma vez Tonacci me disse que “Serras” seria seu último filme, pois não tinha mais energia para passar por tudo o que precisou passar para filmá-lo e para fazê-lo vir a público. Disse que não tinha mais saúde e energia para isso, pois, do jeito que era o cinema brasileiro, não seria mais possível para ele fazer um novo filme. Tonacci era extremamente lúcido, e o pior, o mais terrível, é que hoje percebo que infelizmente ele tinha razão.

*Marcelo Ikeda é professor do Curso de Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autor dos livros “Cinema de Garagem” (2011, com Dellani Lima) e “Cinecasulofilia” (2014).

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