Crítica: Puzze (d) é deboche atrevido da ignorância do Brasil

A atriz Magali Biff em cena de Puzzle (d): um retrato desconcertante de nós – Foto: Adalto Perin

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Os tempos não andam fáceis. No cenário nacional, vemos uma onda crescente de conservadorismo e enfrentamento sem necessidade de uma argumentação racional. Tudo isso marcado pelo desrespeito à diferença do outro, talvez fruto de uma explosiva mistura de política e religião.

A mesma mistura colérica também assusta o mundo lá fora, em demonstrações cada vez mais irracionais de intolerância e necessidade de imposição de uma visão por meio de força violenta. Parece que o mundo esqueceu-se da dialética.

Todas essas inquietudes estão presentes no palco de Puzzle (d), espetáculo dialético dirigido por Felipe Hirsch com seu grupo Ultralíricos. Cercado de profissionais gabaritados da atuação, o diretor faz com que textos literários conversem e se tornem um deboche atrevido da ignorância do Brasil. Esfrega o dedo em muitas das feridas que o País faz questão de exibir, orgulhoso. É, antes de mais nada, uma obra necessária e desconcertante.

A peça é resultado de uma série de três espetáculos criados por conta do ano do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 2013 (Puzzle (a), (b) e (c)), e sua quarta parte foi desenvolvida para a abertura do último festival Mirada, em Santos, em 2014.

Como diz o nome da obra, que em inglês significa quebra-cabeças, Hirsch constrói seu discurso na junção de peças distintas, formadas por textos de autores recentes: André Sant’Anna, Haroldo de Campos, Paulo Leminski e Roberto Bolaño, em pequenos monólogos defendidos por seus atores.

As palavras saem de modo visceral da boca do elenco coeso, que une técnica precisa ao talento evidente para a atuação: Georgette Fadel, Guilherme Weber, Javier Drolas, Luiz Paetöw, Luna Martinelli e Magali Biff.

Magali Biff é um assombro potente a cada aparição, fazendo de sua presença os melhores momentos do espetáculo. É dela a melhor atuação feminina até o momento neste ano nos palcos de São Paulo. Primeiramente, no monólogo irônico sobre a bondade do povo brasileiro. E, mais tarde, está digna de aplauso de pé pelo seu desempenho no texto que é uma verdadeira aula de introdução ao pensamento científico, forte, densa e nada sonolenta.

Outro detalhe que merece atenção é o fato de o ator argentino Javier Drolas falar na peça em seu idioma natal, o castelhano portenho, o que demonstra uma direção aberta à diversidade no palco e sem prisões às amarras mesquinhas da ignorância e do lugar-comum que diretores menos potentes dão aos artistas estrangeiros no País.

Weber demonstra eloquência ao fazer do palco um verdadeiro púlpito. Paetöw mergulha sem medo em uma proposta cheia de técnica e potência. Georgette conquista a todos com um portunhol safado e malandro, provocando o riso cúmplice. Enquanto Luna, mesmo com complicado texto de Bolaño sobre a entrada de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras, segura a cena, com sua atuação soturna e sempre precisa.

Mestre do sentido, Felipe Hirsch tem elenco potente em Puzzle (d) – Foto: Adalto Perin

Tudo isso soa em cima de um palco no qual está evidente trabalho minucioso da direção de arte de Daniela Thomas e Felipe Tassara, que foge de nossa bandeira multicor para mergulhar tudo em tinta preta viscosa (atirada pelos atores destemidos no papel branco), repleta de significado poético o cenário — evidenciado pela luz dura proposta por Beto Bruel e em diálogo com o figurino sóbrio de Cristina Camargo — é gigante, mas frágil, tal qual nosso País, o gigante ignorante.

Dissolvente, a obra desconstrói chavões ufanistas aos quais o brasileiro se habituou, para criar uma imagem dilacerante e bem mais condizente com a realidade social contemporânea do País. Sai de cena a suposta cordialidade para entrar o ódio e a burrice presunçosa.

Em Puzzle (d), como um mestre do sentido, Felipe Hirsch fecha seu quebra-cabeça com a paciência de um menino persistente em sua brincadeira, que não desiste até que a junção das peças alcancem o resultado desejado. Assim, apresenta um retrato irônico e ao mesmo tempo despido de truques, que sacode o espectador e funciona como uma mensagem nada sutil, que diz, debochadamente: olha, seu bobo, o Brasil nem você são tão bons assim.

Puzzle (d)
Avaliação: Ótimo
Quando: Sexta e sábado, 21h, domingo, 18h. 70 min. Até 8/3/2015
Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, Vila Mariana, metrô Ana Rosa, São Paulo, tel. 0/xx/11 5080-3000)
Quanto: R$ 12 a R$ 40
Classificação etária: 12 anos

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1 Resultado

  1. Phillipe disse:

    Concordo com a crítica. O Brasil é de fato um gigante, porém adormecido, anestesiado. Com escândalos de todas as naturezas pipocando pelo país, há ainda quem ache que “está tudo lindo”. Realmente estamos vivendo uma época de trevas da ignorância. Ignorância absoluta de não se enxergar a verdade que está gritante, estampada no quotidiano e no preço da gasolina.

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