Entrevista de Quinta – “Desmemória com ditadura é conveniência política”, diz Alexandre D’Angeli

O ator e performer Alexandre D’Angeli: lembrança de tempos tenebrosos no Memorial da Resistência, na Luz, em São Paulo, entre 19 e 25 de outubro, na performance 436, com entrada gratuita – Foto: Léo Pinheiro

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Foi na escola que o artista Alexandre D’Angeli descobriu que havia passado sua infância durante um dos mais tristes períodos da história brasileira: a ditadura civil-militar. Foi naquele momento que ganhou a consciência política que sempre invade sua arte.

Ele coloca o dedo na ferida ao realizar, entre 19 e 25 de outubro, a performance 436, com entrada gratuita. O título remete ao número de pessoas desaparecidas ou assassinadas pelo regime ditatorial que serão lembradas no ato, que contará com a participação do público, confeccionando 436 máscaras com ele, uma com o nome de cada vítima.

O lugar não poderia ser mais apropriado: o Memorial da Resistência (largo General Osório, 66, Luz), onde funcionou o temido Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP), centro de torturas da ditadura. Hoje, o lugar é uma espécie de museu que se dedica a mostrar a todos os brasileiros de hoje e do futuro que o horror é possível.

Nesta Entrevista de Quinta ao Atores & Bastidores do R7, Alexandre D’Angeli, que além de ator é bonequeiro e figurinista, fala sobre a performance 436, a ditadura que vigorou entre 1964 e 1985 e a nova onda de conservadorismo que invade o País.

Leia com toda a calma do mundo.

Cada máscara terá o nome de um desaparecido político durante a ditadura – Foto: Léo Pinheiro

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você tinha qual idade na época da ditadura, se lembra dessa época?
ALEXANDRE D’ANGELI — Estava com um ano de idade quando terminou o governo Médici em 1974, que foi o final do chamado “anos de chumbo”. Em 1979, quando iniciei no ensino fundamental e por viver numa cidade pacata do interior de São Paulo, não imaginava que essas atrocidades aconteciam.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Quando você entendeu o que foi a ditadura?
ALEXANDRE D’ANGELI — Em 1985, o colégio onde eu estudava organizou uma semana para discutir a importância e se colocar a favor da luta pela anistia de políticos brasileiros e a respeito das eleições diretas para presidente da República. O tema me mobilizou de tal forma que naqueles dias participei de todas as atividades da programação e deixei loucos meus professores, tamanha minha curiosidade sobre o assunto.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Dá pra ver que você era uma criança interessada…
ALEXANDRE D’ANGELI — Além disso, havia em mim uma surpresa de tudo aquilo ter ocorrido durante minha infância, de ser algo tão próximo. De certa forma, fiquei aliviado por ter minha família sempre ao meu lado, imaginando o quão triste seria crescer sem tê-los por perto em razão de perseguições políticas. Penso que foi aí que comecei a ser mais crítico com o que lia e via sendo veiculado nos telejornais. Havia mesmo muitos elementos que caracterizavam aquilo como ditadura e não apenas como uma situação de autoridade.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você tem alguma história familiar com a ditadura?
ALEXANDRE D’ANGELI — Não. Apenas relatos. Minha mãe, que era uma jovem estudante em 1968, conta que havia um professor contra o regime, que em sala de aula atentava para os que quisessem criticar a política e a situação do país, que o fizessem apenas em sua aula, jamais em frente ao colégio. Outra situação que ela me contou é que houve um período, nos dias do golpe, que a volta para casa depois da aula era feita com escolta de militares do exército.

Artista Alexandre D’Angeli vai se encontrar com o público do Memorial da Resistência, para confeccionar máscaras que representam mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar – Foto: Léo Pinheiro

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acha que os brasileiros já se esqueceram dos horrores da ditadura?
ALEXANDRE D’ANGELI — Esquecer? Creio que não e penso que isso nem deva ser uma opção, sobretudo, pelo fato de cerca de 60% da atual população brasileira não ter vivido os tempos da ditadura. É necessário que se fale a respeito, que se conte o que realmente aconteceu e mantenha isso presente, conforme a frase dita por D. Paulo Evaristo Arns: “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. É importante destacar que neste momento, além de pesquisas, eventos e publicações; temos as Comissões em diversas instâncias, mobilizadas em descobrir a verdade, além das secretarias que avançam lentamente nas investigações, tensionando a Justiça brasileira na busca e punição dos culpados. Há diversos outros órgãos e institutos, como é o caso do Instituto Zuzu Angel e do Instituto Vladimir Herzog.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acha que, ao contrário de países como o Chile e Argentina, que mantêm sempre viva a memória dos anos de chumbo, o Brasil deixa essa parte de seu passado esquecida?
ALEXANDRE D’ANGELI — Há uma resistência que luta para que isso se mantenha no passado. Recentemente acompanhamos perplexos a liminar concedida pelo STF suspendendo a ação contra cinco militares reformados acusados pelo homicídio e ocultação de cadáver do ex-deputado Rubens Paiva. É triste e lamentável que ainda hoje isso ocorra – é a eternização da tortura, frase dita por Vera Paiva, filha de Rubens após saber da decisão. Do outro lado, temos iniciativas como é o caso do Memorial da Resistência de São Paulo, local onde realizo a performance 436, que desenvolve um trabalho maravilhoso e incansável. Um espaço de memória, que preserva registros importantes e está sempre mobilizado a desenvolver ações que nos sensibilizem para a compreensão e elaboração dos fatos. Um bom exemplo é a exposição 119 do artista chileno Cristian Kirby, que terá abertura neste sábado com 120 intervenções gráficas sobre fotografias de desaparecidos políticos durante a ditadura no Chile.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Qual o perigo desse esquecimento?
ALEXANDRE D’ANGELI — Prefiro chamar de “desmemória”, pois não é um esquecimento, mas uma conveniência política. Isso é ainda mais grave, pois nos distância da compreensão do que de fato ocorreu, impedindo que reconheçamos quais são as ferramentas usadas por um regime ditatorial. Essa “desmemória” também permite, por exemplo, que “Bolsonaros” sejam eleitos e o fato se reduza a mera discussão política, o que nos faz perceber qual o grau de despolitização e desconhecimento da sociedade. O grau de tolerância para com esses fatos e práticas repressivas do governo de São Paulo ocorridas durante os manifestos do ano passado é prova do quanto estamos anestesiados.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que você resolveu fazer essa performance?
ALEXANDRE D’ANGELI — Há tempos pensava em desenvolver 436. Na ocasião não tinha certo se seria uma ação performativa, mas me indignava muito pensar o que significa a condição de desaparecido para os familiares das pessoas que foram vítimas do regime militar. Sem dúvida, continuar desaparecido é a prova maior de que a repressão existe e ainda nos assombra. Dessa forma, quis criar uma obra onde pudesse materializar esse desejo. Os rostos de papel que monto durante a performance, – máscaras – estão destituídas de sua função cênica, como adereços que caracterizam tipos, personagens ou que faz referência à representação. Procurei utilizar a máscara como desejo pela presentificação, uma tentativa na busca da ideia “desse” outro – o desaparecido. Além disso, proponho pensar o esquecimento no sentido político, a partir do questionamento sobre o que se esqueceu ou o que deve ser esquecido, afim de que se possa construir novas memórias, menos amedrontadas e mais fidedignas ao que de fato ocorreu.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Qual a importância desse contato direto com o público para você?
ALEXANDRE D’ANGELI — Fundamental, tanto que tenho ampliado as ações em espaços públicos, como é o caso da intervenção OBJETOS DE VALOR que teve início no Terminal Rodoviário do Tietê durante a Virada Cultural de 2010, já passou por diversas cidades e Estados e em dezembro acontece na Avenida Paulista ou ainda LISTENING TO THE SHEEP SLEEPING, onde as pessoas podem deitar-se ao meu lado e escutar textos escritos especialmente para a obra pelo cartunista Caco Galhardo. A ação, que passou pelo Projeto É Logo Ali, do Sesc Ipiranga, retorna a partir de 7 de novembro na Casa das Rosas. Vale destacar, que uma ação performativa, como é o caso de 436, o público, ou a audiência, como costumamos chamar, pois as pessoas não irão ao Memorial para assistir a um espetáculo, mas para integrarem a obra. Os visitantes articulam como elemento colaborador para a existência daquela ação. A performance depende necessariamente da interação física e sensorial dessa audiência, sendo peça “construtiva” da proposição do artista, sem essa imersão a performance não se faz como performance.

“Em um encontro não há nada previamente definido”, diz Alexandre D’Angeli sobre performance 436 – Foto: Léo Pinheiro

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você espera alguma reação das pessoas?
ALEXANDRE D’ANGELI — Trata-se de um encontro, portanto, a reação se dará no momento em que ambos estivermos frente a frente. Em um encontro não há nada previamente definido. O que há é uma grande preparação para manter-se disponível e sensível, pois será o Alexandre, performer e não um personagem, propondo e dividindo a montagem dos rostos de papel. Serão exatamente quatrocentos e trinta e seis encontros com pessoas desconhecidas e que continuarão desconhecidas, pois a ação prevê que não conversemos durante a ação. O que importa é a potência desse encontro e a peça resultante disso – a máscara.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Quando foi a primeira vez que você foi ao Memorial da Resistência? O que sentiu?
ALEXANDRE D’ANGELI — Minha primeira visita se deu em 2010. Visitar a exposição permanente foi um mergulho em um dos recortes mais chocantes da história do País. Em diversos momentos senti calafrios ao saber das atrocidades que aconteceram naquele edifício, local que até 1983 sediou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops/SP). Se pensarmos que memória não é algo confiável, é transitável, é humana, é social e, portanto, está suscetível ao esquecimento, locais como o Memorial da Resistência tem um papel fundamental na evolução política do país. Além disso, destaco a importância no que se refere a documentação, conservação e das ações de comunição desenvolvidas pelo Memorial por meio de suas exposições e núcleo educativo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como você enxerga esse novo conservadorismo presente na sociedade brasileira? Você tem medo dele? Por quê?
ALEXANDRE D’ANGELI — Procuro estar muito atento a esses acontecimentos, sobretudo, quando esse conservadorismo motiva intolerância com as camadas menos favorecidas, como foi o caso da eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Algo que me envergonha como cidadão. Creio ainda que isso não seja exclusividade só do Brasil, esse novo conservadorismo está presente em diversas partes do mundo. O que me preocupa são os poderosos instrumentos de convencimento e alienação, e o individualismo instaurado que não valoriza o convívio entre as pessoas e a importância do coletivo na sociedade.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acha que o Brasil pode vir a ter outra ditadura militar num futuro próximo?
ALEXANDRE D’ANGELI — Mais do que achar que podemos ter uma nova ditadura no país, prefiro admitir que há conflitos de interesse e que é necessário lutar fazendo resistência, nos mobilizando para afirmar os interesses ligados a preservação da vida e o exercício da nossa liberdade enquanto sujeitos. O que vejo e fico indignado é o quanto a força e a violência, armas que foram tão usadas pela ditadura, continuam sendo empregadas, sobretudo, nas ações comandadas pelo governo, em especial no Estado de São Paulo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Em quem você pretende votar no segundo turno? Por quê?
ALEXANDRE D’ANGELI — No primeiro turno votei em Luciana Genro do PSOL. Neste segundo turno, é certo que não votarei no Aécio Neves por um conjunto de ações que envolvem a ideia que o candidato tem sobre censura, corrupção, infração às leis ou ainda o histórico do seu governo em Minas Gerais nas áreas de Educação e Saúde, além de episódios ligados à violência contra a mulher.

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