Coluna do Mate: Teatro e feira são semelhantes

Cena da peça Azar do Valdemar: feira e teatro têm semelhanças – Foto: Bob Sousa

As semelhanças entre os modos de seduzir utilizados por feirantes e por artistas do teatro de rua

O pesquisador Alexandre Mate – Foto: Bob Sousa

Por ALEXANDRE MATE*
Especial para o R7

Ao consultar a origem histórica da palavra “feira” pode-se levar um imenso susto. Do latim fḝrîa, a palavra refere-se a dia consagrado ao repouso, festa, férias; folga, descanso. A palavra ganha, já ao tempo de sua criação, conotação dita vulgar, referindo-se indiretamente a mercado. Tal modificação no sentido da ação pressuposta pela palavra ocorre em razão de muitos dos dias de férias ou de festas existirem como consagração aos rituais de natureza religiosa e, por conseguinte, ao livre comércio, ou ao comércio praticado como decorrência à data consagrada.

É importante lembrar, que os dias de festa são aqueles consagrados ao ócio de boa parte da população, mas não às gentes do teatro e das feiras. Ainda nesse particular, e como até hoje, muitos desses dias têm sido consagrados à paz e à tranquilidade. Portanto, com o relaxamento do corpo e distensão do espírito, homens e mulheres estariam mais dispostos a relacionarem-se com ações distanciadas de seu cotidiano.

De qualquer modo, a convenção do(s) dia(s) de descanso, pela permanente desigualdade entre os que têm e os “despossuídos”, o que se sabe é que os dias de feira se estenderam, em muitos casos, de segunda a segunda. Gente à margem dos sistemas constituídos, feirantes e artistas de teatro de rua precisam, literalmente, montar a cena. Artistas do teatro de rua e os feirantes têm muitas semelhanças em seu trabalho, senão vejamos:

– preparação do “cenário” ou adequação ao cenário urbano já existente. Feirantes e artistas, nos dia de trabalho, precisam sair muito antes de casa, com os apetrechos às costas ou no meio de transporte a ser utilizado e uma super-disposição corporal. Ao chegar ao lugar de seu trabalho, rapidamente, e por intermédio de muita força física, artistas e feirantes transformam o lugar indistinto em espaço de trabalho, para iniciar a “função”.

– preparado o cenário, inicia-se a função. Sob o sol (escaldante ou tépido) ou sob a chuva (forte ou chuvisco), os artistas da cena de rua, montado o cenário, apresentam uma série de características para chamar a atenção e cativar o passante. Durante a função, ambos (feirantes e artistas) farão o possível para conservar e manter a atenção dos sujeitos aos motivos fundamentais de sua existência: comprar coisas ou assistir à obra.

– Moça bonita não paga, mas também não leva!

– Quem pode ou quer colaborar com o próximo número?

– Olhaí, olhaí… Tá fresquinho. Pode até apalpar pra sentir o gostinho da fruta…

– Tem alguém corajoso aqui, “mutcho macho” que pode colaborar?

Os bordões se seguem, permanentemente desafiando e conclamando os que passam e os que se aproximam para intervir e se relacionar.

Na rua, quem passam, quem compra, quem assiste, de modos diferenciados, mudam suas funções sociais: assumem novos papéis. Artistas de rua precisam ser sedutores! Precisam ter carisma, precisam trazer para perto a gente que “pisa nos astros distraída”… Desse modo, e pouco importam as condições exteriores (e tantas vezes as interiores também), os artistas da rua “vendem seu peixe”. Doam-se, com tanto contra, sua obra, que só existe em processo de troca. Assim, quando feirantes vendem, quando artistas recebem a participação do público, a feira (também como festa) se cumpriu.

– Cumprida a função, o cenário é desmontado. Novamente, e de modo semelhante, feirantes e artistas guardam seus apetrechos, desmontam a barraca, carregam até o meio de transporte usado e dirigem-se para suas casas. Às vezes, os feirantes param nos entrepostos para reabastecer-se de mercadorias (mais horas de trabalho); artistas, às vezes, param na rua 25 de Março (ou outras) para restaurar suas traquitanas de uso.

Trabalho muito duro e estafante, mas que confere alegria ao viver. Os trabalhadores das duas diferentes cenas, apesar das dificuldades, em tantos casos, não gostariam de mudar de ofício.

Estranhos fenômenos de escolha para ser e estar no mundo, pensam tantos…

Invariavelmente, o teatro e o comércio populares foram sempre praticados por gente desterrada e colocada à margem. Indispostos quanto ao prestígio e impossibilitados de acesso ao construído e instituído pelos Estados, os sujeitos (feirantes ou artistas) expulsos dos mercados oficiais, teimosamente, criaram brechas para sobreviver e aporrinhar a paciência de quem gostaria de ver tudo nos seus respectivos quadrados

De qualquer forma, terminada a função, antes ou depois da parada para reabastecimento, os comentários sobre o vivido e o trocado caracterizam-se em narrativas tão importantes quanto o futebol, a telenovela, as conquistas amorosas… A oralidade reina antes e depois, as relações instituídas no cotidiano preenchem, de verdade, a vida.

Daqueles primeiros e aludidos dias de festa – que segregaram em centro e periferia a desigualdade entre aqueles que têm e os que, quase além de si, pouco têm –, a “feira do viver” estendeu-se pelos tempos. Desse modo, de resistência em resistência, a gente que não consegue ser enquadrada em estruturas montadas e preparadas para determinados fins tem permanecido.

Principalmente, esses homens e mulheres da resistência, estão nos espaços que mudam sua função habitual para facilitar a vida daqueles que, tantas vezes, tem dificuldade maior de ter acesso aos espaços consagrados a certo tipo de ação. Nas feiras-livre pode-se ver, sobretudo, os velhinhos que tem dificuldade maior de andar tanto para abastecer suas casas. Assistindo ao espetáculo de rua pode-se ver um imenso contingente de pessoas que não teriam acesso à linguagem teatral não fossem esses artistas em sua modalidade teatral, que é o teatro de rua.

De certo modo, o teatro de rua, apresentado no corpo vivo da cidade, se caracteriza em certa distensão das atividades mais ligadas ao cotidiano dos transeuntes, dos andarilhos, dos desmotorizados… Entretanto, a linguagem teatral, no que diz respeito à recepção, é complexa, intensa, múltipla e paradoxal. A mesma cena pode ser percebida por inúmeras, e às vezes, opostas interpretações. No chamado teatro de caixa (aquele apresentado dentro de espaços teatrais), tudo tende a ser preparado para que o foco de atenção do espectador conflua para a cena. De modo oposto, na rua, há uma disputa de muitas ações, que tendem a roubar o foco da cena teatral.

Em razão disso, e pelo fato de múltiplas terem sido as experiências de resistência dos artistas da rua e o desenvolvimento de expedientes para sobreviver, é que o teatro de rua, talvez de todas as modalidades à disposição, seja aquele que mais se renova ou que mais potencializa seus achados e a interação com o público.

Fazer teatro em palco é difícil, e é infinitamente mais difícil fazê-lo em espaços públicos. Será que os ditos e nomeados “monstros sagrados do teatro” conseguiriam fazer uma cena na rua? Enfrentando sol e chuva, a polifonia (barulhos, falas e ruídos) da cidade, as intervenções de não atores que querem participar do espetáculo??? Muito provavelmente, não! Então, se o teatro de rua é tão mais difícil, porque tantos o criticam? Por que a experiência profissional de artistas tão valorosos da vida teatral não consta das histórias do teatro? Que outro motivo, senão o preconceito de classe, mesmo, explicaria tanto descaso?

Por último, aos leitores desta coluna e interessados em teatro, atualmente, muitos espetáculos de rua têm sido apresentados em diferenciados locais da cidade. Sugiro que eles sejam assistidos e que se possa criar hipóteses dos motivos pelos quais as obras da rua sejam tão contestadas (tantas vezes sem mesmo conhece-las…).

No processo de luta contra os artistas populares, e múltiplas foram as contendas e lutas enfrentadas contra todo tipo de agressão (do descaso às condenações diversas), os artistas das ruas sempre tiveram de criar todo tipo de estratagema tático para sobrevier, lutar e resistir.

A busca pelas paisagens inusitadas e pelas cenas fantásticas, que cantam os homens e mulheres comuns, em seus cotidianos, tem epicizado (no sentido de levar assuntos da história social) a cena da rua. Na rua todos os gêneros e estilos se misturam e se aproximam. Todo tipo de recursos tem sido usados para apresentar as obras. Claro, como comentado, na rua a competição por focos de atenção é fundamental, então tudo cabe para apresentar histórias no/ do aqui-agora: fogos de artifício, brinquedos, bonecos, miniaturas… Tudo já foi experimentado pelos “feirantes do teatro” no sentido de construir a cena e fincá-la no coração de homens e mulheres, velhos e crianças, transeuntes apressados ou moradores de rua.

Tudo já foi experimentado, e muito, ainda, há a ser feito e apreciado.

*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisador de teatro. Ele escreve sua coluna no blog sempre no primeiro domingo de cada mês.

 

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