Crítica: Musical Cazuza é melhor do que o filme

Papel para se pedir de joelhos: Emílio Dantas conquista respeito como Cazuza – Foto: Leo Aversa

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Cazuza sempre foi um herói às avessas dentro da cultura brasileira recente. Ele não morava no Olimpo, mas “no lado escuro da vida”. Sua obra o tornou referência na música popular brasileira produzida durante a efervescente década de 1980, da qual ele foi chamado de o poeta máximo.

Cazuza era um artista que tinha coragem de sobra, seja para xingar quem lhe desse na telha ou para abrir publicamente sua sexualidade e também sua contaminação pelo vírus da Aids — em um tempo em que a doença carregava consigo um estigma de preconceito infinitamente maior do que o dos dias atuais.

Cazuza tinha personalidade e fazia com que sua arte caminhasse lado a lado com os dissabores de sua vida. Não era desses “artistas” pré-fabricados e trancados no armário da mediocridade dos tempos atuais.

Pois bem. Diante disso tudo, retratar Cazuza no teatro é tarefa de responsabilidade grandiosa. É preciso coragem do tamanho da que tinha o homenageado.

Pois João Fonseca teve e adaptou para os palcos a vida do roqueiro, mais uma vez sob a ótica autorizada de Lucinha Araújo, mãe de Cazuza. Antes de ressuscitar Cazuza no palco, em Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz, o Musical, Fonseca já havia feito o mesmo, e com sucesso, com Tim Maia, personagem que catapultou o ator Tiago Abravanel ao estrelato fazendo teatro — coisa raríssima no Brasil atual.

Lucinha é a maior guardiã da obra de Cazuza. Mesmo sendo mãe de filho único, sabe o filho que teve. Por isso, na medida do possível, tenta manter sua reprodução fiel ao original, pelo menos até onde deixa o mundo do showbiz.

Verdade seja dita: a peça é mais próxima de Cazuza do que o filme Cazuza – O Tempo Não Para, de 2004, dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho — pelo menos a obra teatral não dá chá de sumiço em Ney Matogrosso, figura essencial na vida e na trajetória artística de Cazuza, como o longa-metragem fez. Na peça, Ney aparece interpretado com competência e charme por Fabiano Medeiros.

O papel de Cazuza deveria ser o sonho para qualquer ator de musical na faixa dos 30 anos e com algum talento dramático. Desses para se implorar de joelhos para fazer. Pois o sortudo em ganhá-lo foi Emílio Dantas. Aprovado pelos pais de Cazuza, é claro.

Musical se sustenta no talento dramático de Susana Ribeiro, como Lucinha, e Emílio Dantas, como Cazuza: ótimos embates cênicos entre mãe e filho – Foto: Leo Aversa

E Emílio não faz feio. Muito pelo contrário, faz um Cazuza crível, em sua rebeldia aliada ao excesso de carisma que o fez estrela nacional. É impressionante a semelhança do timbre de voz. Emílio canta como Cazuza, fala com o Cazuza, gesticula como Cazuza e, mais do que tudo, apronta como Cazuza. É o melhor papel da carreira do ator, e ele parece saber disso. Tanto que mergulha de cabeça e conquista respeito.

O talento do ator, aliado ao da atriz Susana Ribeiro, corretíssima na pele de Lucinha, é o que sustenta a montagem. As melhores cenas são as de embate entre os dois.

Na parte técnica, o cenário assinado por Nello Marrese é praticamente inexistente — trata-se de um conglomerado de plataformas de madeira, mas a iluminação de Daniela Sanches e Paulo Nenem se sai melhor, conseguindo diálogo com a história escrita por Aloísio de Abreu, que faz boa adaptação do livro Só as Mães São Felizes, de Lucinha Araújo e Regina Echeverria.

Carol Lobato, por sua vez, revive a exuberância visual oitentista nos figurinos que transportam todos para a chamada “década perdida”.

O restante do elenco é coerente com o gênero e executa o trabalho a contento. Cantam e dançam bem. E seguram como podem, vez ou outra, alguma ceninha dramática. Vão bem os integrantes da banda Barão Vermelho, Thiago Machado (Frejat), Oscar Fabião (Maurício Barros), Diego Montez (Guto Goffi) e Marcelo Ferrari (Dé Palmeira), assim como Bruno Narchi, que dá peso ao seu Serginho, um dos principais namorados de Cazuza.

Mas há incômodos. André Dias constrói um Ezequiel Neves — produtor do Barão e espécie de guru de Cazuza — em um registro totalmente diferente do restante do elenco. Há trabalho evidente do ator nesta construção, e ela poderia até se destacar, caso estivesse em outro contexto. Contudo, na interação com o restante da obra, há um ruído que faz com que Zeca vire uma caricatura. Este crítico foi amigo de Ezequiel Neves e é sabedor de que o jornalista e produtor musical era realmente um escândalo em pessoa. E até mesmo nas cartas que escrevia. Mas, mesmo assim, ainda era gente de carne e osso e não um desenho animado falante, como surge no musical.

Outra que destoa é Brenda Nadler como Bebel Gilberto. Ela faz uma Bebel que parece ter misturado uísque com tranquilizantes o tempo todo. Tudo bem que a Bebel de hoje tem uma voz um tanto quanto adormecida, mas é sensacionalista levar isso a uma Bebel praticamente adolescente, que é a da peça. Também cansa os maneirismos da atriz na tentativa de quebrar forçosamente a quarta parede e provocar graça junto ao público — sobretudo na cena da composição de Eu Preciso Dizer que Te Amo, onde ela está em um registro completamente destoante de seus colegas.

Outro incômodo está na segunda metade do roteiro: a quantidade sem fim de cenas do sofrimento de Cazuza na luta contra a Aids. Todos sabemos que a doença foi cruel com ele e seus pais, mas não é preciso gastar tanto tempo cênico com esse sofrimento. Tem uma hora que a sensação é de que já deu para entender, e a peça já está passando do ponto.

Se o filme, como já foi dito, cometeu graves omissões, a peça é mais condizente com a história, retratando sem hipocrisia detalhes da vida de Cazuza, desde seu vício em cocaína até mesmo fatos como a capa em que a revista Veja praticamente matou o cantor em vida, além da emblemática e corajosa entrevista na qual Cazuza assumiu ser portador do vírus HIV em uma época que a doença ainda chamada de “peste gay” era alvo de preconceito feroz.

O musical cumpre a função apresentar um personagem fundamental de nossa cultura ao mesmo tempo em que deixa o público entretido. É primordial que em tempos tão caretas a nova geração conheça um pouco da vida e da obra de um artista que não teve medo de se reinventar constantemente e de compartilhar com o público seus reais pensamentos — e medos também. O musical Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz cumpre a missão: é um espetáculo que procura ser fiel ao homem que conseguiu aliar entretenimento da grande massa ao pensamento inteligente e à música de qualidade. E que faz uma baita falta.

Cazuza – Pro Dia Nascer Feliz
Avaliação: Muito bom
Quando: Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h30 e 21h30. 165 min. Até 26/10/2014
Onde: Teatro Procópio Ferreira (r. Augusta, 2.823, Cerqueira César, São Paulo, tel. 0/xx/11 3083-4475)
Quanto: R$ 50 a R$ 180
Classificação etária: 14 anos

Cazuza com a banda Barão Vermelho do musical em cartaz em SP: bem melhor do que o filme – Foto: Leo Aversa

Leia a crítica de Átila Moreno para o espetáculo durante a temporada no Rio

 

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2 Resultados

  1. Wallace Francisco disse:

    Muito bom… musica perfeito!!!

  2. Phillipe disse:

    1. Para ser descrita como superior ao filme, é porque a peça deve ser realmente muito boa!
    2. Discordo do povo que fala que a década de 80 foi a “década perdida”. Ao menos em termos de música, filme e demais manifestações culturais, foi uma década riquíssima, inclusive eu a acho mais rica do que a atual. Mesmo em se tratando de Moda, os Anos 80 volta e meia são revisitados, ainda que, em relação a vestuário, de fato tenham ocorrido excessos. Mas ao menos a geração da década de 80 não é marcada pelo individualismo exacerbado que se veria em gerações futuras.

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