Carta de Tiradentes apresenta propostas para o audiovisual na Mostra de Cinema de Tiradentes
Documento é resultado dos debates da primeira edição do Fórum de Tiradentes, que reuniu 70 nomes do setor na cidade histórica de Minas Gerais
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
A Carta de Tiradentes, resultado do primeiro Fórum de Tiradentes, foi apresentanda nesta quarta-feira, dia 25 de janeiro, durante a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O documento reúne reinvindicações e proposições do setor audiovisual para o recém-recriado Ministério da Cultura, o MinC, e para a Ancine, a Agência Nacional de Cinema, como fruto de debates entre 70 nomes do setor reunidos na cidade histórica mineira.
O documento é o resultado dos trabalhos realizados pelos colaboradores do Fórum de Tiradentes, que reuniu cinco grupos de trabalho (GTs): Formação, Produção, Distribuição, Exibição/Difusão e Preservação.
A Carta de Tiradentes elenca 17 pontos gerais: governança; marco regulatório de fomento; regulação do video on demand e streaming; cotas de conteúdo; linhas não reembolsáveis no Fundo Setorial do Audiovisual; descentralização de investimentos; Lei do Audiovisual; transversalidade institucional; política internacional do setor; políticas para a EBC (Empresa Brasil de Comunicação); sistema nacional de preservação; formação; promoção de acesso; democratização de acesso a internet; relações trabalhistas; mensuração de dados e indicadores; e informação e conscientização.
A leitura da Carta de Tiradentes foi feita pelos coordenadores de GTs, Hernani Heffner e Vânia Lima e contou com a presença da diretora da Universo Produção e coordenadora geral da Mostra de Cinema de Tiradentes e do projeto Cinema sem Fronteiras, Raquel Hallak.
Com suas reinvindicações para o cinema nacional e o audiovisual brasileiro, a Carta de Tiradentes aborda a importância de existência de políticas públicas, que possibilite a criação, confecção e exibição e distribuição de filmes, e reitera a importância de criação de leis que regulem o streaming e on demand.
Leia, abaixo a íntegra da Carta de Tiradentes.
Carta de Tiradentes
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes
20 a 28 de janeiro de 2023
FÓRUM DE TIRADENTES – ENCONTROS PELO AUDIOVISUAL BRASILEIRO
CARTA DE TIRADENTES 2023
Como se destrói um país? Como se constrói um país?
Do golpe de estado de 2016 à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, o Brasil conheceu um dos períodos mais obscuros e desafiadores de sua história. E também redescobriu a força e a resiliência da sociedade civil organizada, particularmente das trabalhadoras e trabalhadores das artes, que mesmo imersos em uma guerra cultural absurda, alijados de políticas e programas de investimento do governo federal, resistiram à criminalização e ao desmonte perverso da máquina pública.
Dentre as artes, uma das mais afetadas, perseguidas e quase que totalmente paralisadas está o audiovisual
brasileiro independente. Da organização institucional à preservação, passando pela formação, produção,
distribuição e exibição, não houve área do audiovisual imune ao ímpeto destrutivo da última gestão do
Estado brasileiro. A pulsão de morte típica dos regimes nazifascistas, que se abateu sobre o país e o setor
cultural, se materializou em acontecimentos trágicos, como os recentes e furiosos ataques às sedes dos
poderes da República, e as chamas que consumiram filmes e documentos no incêndio de um dos depósitos
da Cinemateca Brasileira.
Não por acaso, a Mostra de Cinema de Tiradentes de 2023, casa deste Fórum, adotou como tema o Cinema Mutirão, um audiovisual brasileiro de feição realmente independente, que encontrou no digital e na construção coletiva caminhos para uma afirmação crescente de um novo Brasil e de uma nova ética das
imagens, que já não admite a invisibilidade de grupos historicamente excluídos – povos indígenas, pessoas
negras, mulheres, a comunidade LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência – e também de todas as regiões e territórios, bem como todas as faixas etárias, com especial destaque para a infância.
Na abertura do Fórum, a Ministra do Supremo Cármen Lúcia reafirmou a importância do Estado de Direito, o respeito à constituição, o direito à cultura como premissa do exercício da cidadania. Ao longo dos trabalhos, vivenciamos encontros, muitas trocas, escutas e debates, num ambiente generoso e de harmonia; e para produzir, crítica e afetuosamente, encantamentos e visões de mundo.
A metodologia deste fórum reuniu, num ambiente de escuta sincera, um conjunto de mais de cinquenta
profissionais de diversas gerações, trajetórias e experiências, que se debruçaram sobre as espinhosas
questões transversais ao campo, e produziram contribuições com a premissa de buscar uma nova cultura
política para o setor, capaz de revelar a interdependência entre formação, preservação, produção e modos
de difusão e circulação.
A dinâmica da participação coletiva foi capaz de realizar uma fotografia em movimento do ecossistema do
audiovisual, indicando um conjunto de recomendações valiosas para uma agenda de reconstrução e
aprimoramento.
Nossas premissas e valores balizadores foram, desde o primeiro momento, democracia, diversidade,
descentralização e desenvolvimento econômico e social.
As informações e recomendações aqui produzidas serão encaminhadas ao Ministério da Cultura, em especial à Secretaria do Audiovisual e à Ancine, e para outros órgãos do poder executivo, além dos poderes legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, o resultado deste trabalho coletivo será imediatamente compartilhado com a sociedade e com toda a cadeia produtiva e criativa do audiovisual, bem como todos os agentes que possam manter esta discussão e mobilização viva. Na visão deste fórum, governos estaduais, municipais e do Distrito Federal também têm responsabilidade no desenvolvimento da política audiovisual, e a eles também será entregue o resultado deste trabalho.
A Lei Aldir Blanc tornou-se um profundo divisor de águas pelo esforço conjunto do setor cultural em viabilizála e por seu princípio de descentralização dos recursos públicos federais para estados, distrito federal e municípios de todas as regiões e tamanhos, ampliando-se e aperfeiçoando-se na Lei Aldir Blanc 2. A Lei Paulo Gustavo devolverá para o setor seus próprios recursos financeiros provindos do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual, garantindo que tentativas de usurpação dos fundos não se repitam. São leis fundamentais, mas é preciso ir além, como ficou evidente nos trabalhos do Fórum.
Consideramos que este Fórum é um ponto de partida e como fruto das discussões indicamos as seguintes
recomendações estruturantes e transversais:
Governança: Resgate e qualificação do tripé da institucionalidade da política audiovisual brasileira: reverter o esvaziamento do Conselho Superior de Cinema – CSC, fortalecer e recompor o protagonismo da Secretaria do Audiovisual – SAV para atuação conjunta com a Agência Nacional do Cinema – ANCINE. Reafirmamos a necessidade de uma Agência aberta ao diálogo, que tenha efetividade e eficácia no cumprimento de seu mandato institucional.
Marco Regulatório do Fomento à Cultura: Aprovar com urgência o “Marco Regulatório do Fomento à
Cultura”, assegurando as demandas do setor audiovisual brasileiro independente no texto da Lei, para trazer segurança jurídica ao setor cultural e garantir a plena execução e alcance das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2.
Regulação do VOD/Streaming: Avançar com a urgente regulação da operação do Vídeo Sob Demanda
(Streaming) e outras tecnologias de distribuição e veiculação de conteúdo audiovisual, atuais e futuras, com foco na defesa do conteúdo brasileiro independente.
Cotas de Conteúdo Audiovisual Brasileiro: Aprovar instrumento legal com urgência que restabelece a Cota de Tela para garantir a exibição da produção independente brasileira em salas de cinema e suas respectivas sessões, visando tornar permanente este importante mecanismo e prorrogação das cotas de conteúdo audiovisual brasileiro da Lei do SeAC, e garantir a efetiva fiscalização do seu cumprimento por parte da Ancine.
TV Aberta: Construir e implementar regulação de mídia.
Linhas não reembolsáveis no Fundo Setorial do Audiovisual: Ressaltamos a necessidade de garantir e
aumentar significativamente os recursos não reembolsáveis, dada a importância das ações sem obrigação de retorno comercial nos segmentos de formação, produção, distribuição/circulação, exibição/difusão e
preservação, em convergência com o fortalecimento da Secretaria do Audiovisual.
Descentralização de Investimento: Garantir o alcance territorial das políticas nacionais, com critérios de
descentralização em todas as ações e programas, retomando e ampliando as políticas federativas da Ancine.
Lei do Audiovisual: É urgente a mobilização junto ao legislativo para a prorrogação da vigência desta lei e
ampliar o limite do aporte de recursos dos incentivos fiscais, defasado em relação aos custos reais de
produção.
Transversalidade Institucional: Estabelecer parcerias interministeriais e instituições estataais tendo como
interlocutor ativo o Ministério da Cultura, para o desenvolvimento e fomento do setor audiovisual como
efetiva política de Estado.
Política internacional para o audiovisual brasileiro: Rearticular a política audiovisual brasileira com a
retomada do lugar estratégico do Brasil no mundo, buscando parcerias com a América Latina, Mercosul,
Brics, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, África, Oriente Médio e União Européia.
EBC – Empresa Brasil de Comunicação: O papel do campo público na comunicação social é essencial para a consolidação da democracia e afirmação da cidadania. A EBC tem um papel definidor na complementaridade e distinção dos sistemas público, estatal e privado reconhecidos na Constituição Brasileira. É fundamental a reintegração da EBC e TVs Públicas ao ecossistema do audiovisual brasileiro.
Estabelecer um sistema nacional de preservação: Inserir a memória e a preservação como parte da
estruturação fundamental da cadeia produtiva do audiovisual. Criar a Rede Nacional de Arquivos
Audiovisuais, para a constituição de um sistema descentralizado.
Formação: Compreender a formação audiovisual e educação digital em todos os níveis de ensino, como uma dimensão estruturante e fundamental da cidadania, da cadeia produtiva do setor e da constituição subjetiva e social brasileira em todas as faixas etárias. Atender a crescente demanda de quadros técnicos, executivos e criativos advinda do desenvolvimento do audiovisual brasileiro e a produção local de tecnologias.
Política de promoção de acesso: É necessário um foco estratégico na ampliação do acesso ao audiovisual,
como direito fundamental de todos os brasileiros, implantando programas integrados às políticas afirmativas de combate à desigualdade social.
Democratização do acesso à internet: resgatar o Plano Nacional de Banda Larga, para incluir todos os
brasileiros no acesso à internet.
Relações trabalhistas: É fundamental promover estudos e debates sobre a situação trabalhista no setor do
audiovisual, promovendo atualizações e aprimoramentos.
Dados e indicadores: Fortalecer o Observatório do Cinema e Audiovisual com a revisão e modernização dos parâmetros de mensuração do impacto do audiovisual, e produzindo uma inteligência estratégica sobre o setor, com transparência e soberania digital.
Informação e Conscientização: Promover campanhas informativas para que a sociedade compreenda a
importância do audiovisual brasileiro e das políticas culturais como um todo, para o fortalecimento da
cidadania e da soberania nacional.
E essas são as diretrizes gerais. O trabalho completo será disponibilizado em breve.
Sem anistia e sem queima de arquivo!
Viva a democracia! Viva o audiovisual brasileiro!
Colaborou David Godoi.
*O Blog do Arcanjo viajou a convite da Mostra de Cinema de Tiradentes.
Veja a cobertura da Mostra de Cinema de Tiradentes no Blog do Arcanjo!
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Um dos jornalistas culturais mais respeitados do Brasil, Miguel Arcanjo Prado é CEO do Blog do Arcanjo, fundado em 2012, e do Prêmio Arcanjo, desde 2019. É mestre em Artes pela UNESP, pós-graduado em Cultura pela ECA-USP, bacharel em Comunicação pela UFMG e crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro e apresenta o Arcanjo Pod. Foi eleito um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se por três vezes. Recebeu a Medalha Mário de Andrade, maior honraria nas letras do Governo do Estado de São Paulo. Passou por Globo, Record, R7, Record News, Folha, Abril, Huffpost Brasil, Notícias da TV, Contigo, Superinteressante, Band, CBN, Gazeta, UOL, UMA, OFuxico, Rede TV!, Rede Brasil, Versatille, TV UFMG e O Pasquim 21. É presidente do júri do Prêmio Arcanjo e integra o júri do Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio Destaque Imprensa Digital, Guia da Folha, e Canal Brasil de Curtas. Recebeu ainda o Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação Nacional ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil e Prêmio Leda Maria Martins.
Foto: Edson Lopes Jr.
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