Morte de Cacilda Becker faz 50 anos: família luta para preservar memória

Nesta sexta (14) faz meio século que o Brasil perdeu de um golpe seco, no dia 14 de junho de 1969, sua maior atriz, Cacilda Becker (1921-1969), com apenas 48 anos de idade. Ela sofreu um aneurisma cerebral no palco, em São Paulo, enquanto encenava a peça “Esperando Godot” com o marido, Walmor Chagas (1930-2013). Levada para o hospital já em coma, assim permaneceu por 38 dias até não mais resistir e deixar o teatro brasileiro em luto eterno. 

No fim de tarde desta quarta (12), acompanhado do fotógrafo Edson Lopes Jr. o Blog do Arcanjo visitou a casa onde a atriz viveu no bairro do Itaim Bibi, na zona oeste da capital paulista. Hoje circundada por edifícios altos, a imponente residência dos anos 1940 guarda boa parte do acervo de Cacilda, como fotos, prêmios, livros, figurinos e outros objetos pessoais.

Casa de Cacilda Becker guarda objetos históricos da artista, em São Paulo

Casa de Cacilda Becker guarda objetos históricos da artista, em São Paulo

Tudo isso é cuidado por seu neto, Guilherme Becker, e por Ivano Lima, amigo da família e especialista na vida e trajetória da atriz. Eles sonham com uma grande exposição, em transformar a casa em espaço cultural, além de buscarem parcerias para um filme biográfico e uma série de televisão com a trajetória da grande atriz do teatro brasileiro moderno, com Leona Cavalli como protagonista. Leona, que é amiga da família e já interpretou Cacilda no teatro, ainda prepara um documentário sobre a atriz.

Estavam ainda na casa durante a visita Dadá da Silva, de 87 anos, que foi babá dos filhos de Cacilda, e Maria Thereza Vargas, pesquisadora histórica do teatro brasileiro e autora da biografia de Cacilda Becker.

Dadá, a babá que sofre há 50 anos com a morte de Cacilda Becker

Aos 87 anos, dos quais há 70 com a família Becker, com a qual começou a trabalhar com apenas 17 anos, a babá aposentada Dadá da Silva jamais se esquece do dia em que Cacilda Becker teve o aneurisma cerebral. Só de lembrar o fatídico dia, se emociona: “Ela não era minha patroa, era minha irmã”, afirma.

“No dia do aneurisma dela, antes de sair de casa para ir ao teatro ela me falou para levar a Maria Clara ao teatro, que ficava na av. Brigadeiro Luís Antônio. Mas eu acabei levando a Maria Clara, que tinha cinco anos, para ver um filme do Walt Disney. Quando cheguei em casa, um repórter ligou, perguntando: ‘É verdade que Cacilda Becker morreu?’. Fiquei tão revoltada que falei um palavrão com ele e desliguei.

A babá aposentada Dadá da Silva: “Cacilda não era uma patroa, era uma irmã” – Foto: Edson Lopes Jr. – UOL

Depois, me ligaram e confirmaram a notícia. Quase morri”, lembra. “Ela era tão moça, tão bonita… Meu mundo caiu. É uma dor que carrego comigo até hoje. Eu me sinto culpada até hoje. O Cuca [Luiz Carlos Becker Fleury Martins, filho de Cacilda com o primeiro marido, Tito Fleury Martins, e pai de Guilherme Becker], me diz que eu não tenho de me sentir assim, mas eu me sinto”, fala.

A babá conta que quando morreu, Cacilda já morava no apartamento duplex no Edifício Baronesa de Arary, na av. Paulista ao lado do Parque Trianon e em frente ao Masp. “Morávamos ela, os filhos, Cuca e Maria Clara, eu e a cozinheira”, conta Dadá.

Dadá Silva conta as histórias sobre Cacilda Becker: “Não era patroa, era uma irmã” – Foto: Edson Lopes Jr. – UOL

“A casa vivia cheia de gente, ela dava jantares, iam muitos artistas. Ela ensaiava as peças no andar de cima. ‘Navalha na Carne’ foi ensaiada lá”, recorda.

“Ela adorava teatro, mas ela gostava mesmo era de ficar em casa, quietinha, ou ouvindo as musiquinhas dela na sala ou passando texto”, conta. “Era amável com todo mundo, só não gostava de comer. Mas, quando comia, gostava de peixe”, revela.

Maria Thereza Vargas: “Cacilda enfrentou a ditadura e quebrou preconceitos

Para a pesquisadora do teatro e biógrafa de Cacilda Becker Maria Thereza Vargas, 90 anos, a grande atriz “percorreu momentos importantes do teatro brasileiro no século 20”.

“Ela tinha uma personalidade abrangente, sempre se destacava em qualquer lugar onde estivesse. Não foi só atriz no palco, ela viveu o seu momento histórico e passou por ocasiões muito difíceis para a arte brasileira durante a ditadura militar, lutando contra a censura e a prisão dos artistas, entre eles a de sua irmã, Cleyde Yáconis”, conta.

Para Maria Thereza, Cacilda elevava o nível de interpretação a cada atuação. “Ela fazia de cada ato no palco um momento artístico. Estudava como ninguém uma personagem”, diz.

A pesquisadora define como “um grande impacto” a morte repentina de Cacilda: “Ninguém esperava por isso. Ela fez o primeiro ato e teve o aneurisma e nunca mais voltou”.

Detalhe da sala da casa onde viveu Cacilda Becker – Foto: Edson Lopes Jr. – UOL

E reforça o pioneirismo da atriz, uma mulher que rompeu barreiras e quebrou preconceitos que ainda haviam com a profissão, enfrentando delegados e generais para salvar artistas da prisão.

“Ela veio de uma família modesta e começou muito jovem na profissão, combatendo os preconceitos. Ela dizia ‘todos os teatros são o meu teatro’. Ela ajudou muitos artistas que estavam sendo perseguidos na ditadura. Ela foi a uma audiência com o presidente general Castelo Branco e ele falou com ironia que ela tinha acordado cedo. Ela respondeu: ‘Não estamos aqui para brincadeiras, general’. Era uma mulher de pulso firme”, lembra.

“Cacilda falava muito bem e de maneira muito séria. O Paulo Francis, que era na época um crítico do Rio, dizia: ‘Lá vem a Cacilda Becker, falando, falando, achando que pode resolver tudo pelo simples ato de falar’. Quando ela morreu ele fez uma crônica belíssima sobre ela”.

Detalhes dos retratos de Cacilda Becker na sala da casa onde ela viveu – Foto: Edson Lopes Jr. – UOL

A pesquisadora espera que os governantes se atentem da importância de Cacilda Becker e deem a ela o merecido lugar na memória de São Paulo e do país. “Ela merece um grande centro cultural com seu acervo”, fala, lembrando da fatalidade da vida do artista.

“A condição do ator é morrer mesmo. O momento em que ele está no palco interpretando vale mais do que a vida. Cacilda dizia que só era feliz no palco. E nele morreu”, finaliza.

Leona Cavalli, a atriz obcecada por Cacilda Becker

Leona Cavalli interpretou Cacilda Becker em “Cacilda!”, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, no Teat(r)o Oficina, em 1999. Desde então, nunca mais conseguiu se distanciar da personagem, tornando-se amiga íntima da família Becker.

“Eu li o livro da Maria Thereza Vargas ainda no Rio Grande do Sul, quando começava minha carreira de atriz. Fiquei encantada por Cacilda e jamais imaginaria que um dia Zé Celso me convidaria para interpretá-la, substituindo a Bete Coelho e a Giulia Gam, que também fizeram a personagem”, afirma.

“Para mim, a Cacilda significa o século 20 no teatro brasileiro. Reviver Cacilda é importante para entender a nossa história. Ela representa o teatro, uma classe”, discursa Leona que sonha poder interpretar Cacilda em um filme e em uma minissérie.

“É uma história que precisa ser contada para todo o povo brasileiro”, defende. “Ela criou uma forma de interpretação do teatro brasileiro. E deu importância à profissão de ator, de atriz no contexto social. Sou fascinada por Cacilda Becker. Leio qualquer coisa que sai sobre ela”, conta a atriz, antes de fazer uma revelação: “Estou preparando um documentário sobre Cacilda Becker. Essa história precisa ser contada”, adianta.

Ivano Lima: vida dedicada à memória de Cacilda Becker

Apaixonado por Cacilda Becker, de quem sabe todos os detalhes de seus 48 anos de vida, Ivano Lima passa os dias cuidando do acervo deixado pela atriz.

“Esse é o grande problema do Brasil, não sabe preservar sua memória. A Cacilda foi uma bandeirante. Ela abriu caminhos. Se jogava sem rede. Cacilda é vida em movimento e em transformação”, define.

Neto de Cacilda Becker quer interpretar Walmor Chagas em série e filme com Leona Cavalli

Para o neto de Cacilda Becker, o cineasta e ator Guilherme Becker, é preciso preservar e difundir sua memória. “Eu e o Ivano temos vontade de organizar uma exposição chamada ‘Irmãs’, sobre Cacilda Becker e Cleyde Yáconis, mas precisamos encontrar um patrocinador”, avisa.

“Também queremos transformar essa casa onde ela viveu aqui no Itaim Bibi em um espaço que possa reunir os artistas, tipo foi o Gigetto. Um lugar para os artistas virem depois das peças”, revela.

“Minha avó é a personalidade mais importante do teatro brasileiro. Ela abrigou em sua casa nomes perseguidos como Plínio Marcos e Paulo José. Ela ia na delegacia e mandava soltar todo mundo”, fala o neto.

Detalhe do guarda-roupa de Cacilda Becker, com o último figurino usado por ela na peça “Esperando Godot”, quando sofreu um aneurisma no palco – Foto: Edson Lopes Jr. – UOL

Sobre a história da atriz virar minissérie na Globo e um filme, ele diz: “Eu adoraria que isso acontecesse. A Leona Cavalli tem de interpretar minha avó e eu gostaria de fazer o papel do Walmor Chagas. Seria lindo: uma grande exposição, uma minissérie, um filme biográfico e o filme documentário da Leona. Seria lindo e minha avó merece isso”, fala.

Antes de se despedir, o neto de Cacilda Becker faz um pedido à reportagem: “Eu gostaria muito de encontrar o José Miguel Wisnik, que compôs a música ‘Cacilda’, gravada pela Maria Bethânia. Queria que ele e a Bethânia, a quem não conheço também, viessem aqui na casa da Cacilda. Porque essa música emocionou o Walmor e a mim também”, revela.

“O Wisnik conseguiu captar uma coisa muito interessante da minha avó, que é essa coisa dos lábios citados na canção que é a minha preferida. Pode colocar aí que os dois estão convidadíssimos, Bethânia e Wisnik, a virem jantar aqui na casa de Cacilda Becker”.

Colaborou Leandro Lel Lima

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