“Conquistei tudo graças à minha ousadia”, diz Margareth Menezes

A cantora baiana Margareth Menezes – Foto: Divulgação

Desde que surgiu em Salvador em meados dos anos 1980 com a potência de sua voz grave cantando “Faraó” e “Elegibô”, Margareth Menezes tornou-se automaticamente uma das estrelas não só da música baiana como da música popular brasileira mundo afora. Tanto que, nesta época, foi convidada pelo norte-americano David Byrne para abrir seus shows pelo mundo.

Hoje, aos 55 anos, ela investe no projeto “Rebeldia Nordestina 2”, no qual canta as músicas dos compositores contemporâneos. A cantora, que faz show em São Paulo ao lado de Chico César e Elba Ramalho na Casa Natura Musical nesta quinta (22), retorna depois à capital paulista no próximo mês, quando faz dois shows de seu projeto solo no Sesc Pompeia, nos dias 12 e 13 de abril. Depois, parte em turnê por Estados Unidos, Canadá e Europa.

Margareth recebeu o Blog do Arcanjo no UOL para um almoço no restaurante La Pasta Gialla, em Salvador, onde concedeu esta longa entrevista exclusiva. Falou de tudo um pouco: empoderamento das mulheres e dos negros, futuro do axé e do Carnaval baiano, hegemonia atual do sertanejo nas FMs, o sucesso de Anitta, Jojo Todynho e Pabllo Vittar, eleições, assassinato de Marielle Franco, o que espera para o Brasil e, claro, sua música.

“Aqui na Bahia sou uma artista que não teve oportunidades iguais, conquistei tudo graças à minha ousadia, de não aceitar e conquistar, abrir possibilidades. Nunca me coloquei no lugar de que sou a preta coitadinha da Bahia. Não sou! Não gosto de sentimento que preto é um coitado! Não somos, não!”, declarou.

Leia com toda a calma do mundo.

Miguel Arcanjo Prado – O que acha da reação que vem tendo o brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL)?
Margareth Menezes –  A sociedade está reagindo, protestando no Brasil e no mundo todo. Todo mundo tem de procurar fazer sua reação. Todos nós. As pessoas têm que manifestar sua indignação, se aproximarem mais da luta política naquilo que acredita, nem falo de partidos, falo de postura. Como é que pode uma falta de respeito dessas perante a vida, porque incomodou alguns? O uso da violência diante do grito de socorro pela comunidade? Ela era uma pessoa que fazia um trabalho para dignificar a vida de pessoa que não tem onde correr, vai dar queixa para onde? Agora dá para identificar o problema: tem pessoas, assassinos, usando o poder institucional, para cometer esses tipos de ações para amedrontar o ser humano. Vamos viver numa ditadura?

A vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada no Rio – Foto: Divulgação

Miguel Arcanjo Prado – E as eleições?
Margareth Menezes – A juventude é o grande viés transformador do país, está com a faca e o queijo na mão, com voz e num momento de eleição. Espero que a juventude faça a diferença e mostre outra cara do Brasil, que não seja a cara da repressão. Realmente está muito difícil, a política está dilacerada. Qualquer partido que entrar vai conchavar. O que precisa mudar é o sistema. O sistema político tem de mudar. Sou a favor do parlamentarismo democrático. Temos de mudar nosso jeito e estilo de fazer política, a máquina pública tem de ser enxugada, não tem nação que consiga sustentar o modelo de máquina pública que existe no Brasil.

Miguel Arcanjo Prado – O que acha das mulheres não aceitarem mais o assédio e virem denunciando o machismo e a violência masculina?
Margareth Menezes – Acho que está na hora de parar com esse tipo de submissão, essa leitura que achar que ser mulher é ser submetida a. Eu acho muito bom que esse assunto paire. Precisamos equilibrar a energia do planeta, mulher é ser vivente, energia espiritual que ajuda a equilibrar esse planeta, que está com falta de delicadeza, paciência, harmonia. Precisamos dos perfumes da natureza, que estão ligados ao feminino. Precisamos de um pouco mais de mãe na humanidade.

Miguel Arcanjo Prado – Como é ser uma das artistas brasileiras mais ouvidas no mundo pelo YouTube?
Margareth Menezes – A pesquisa foi feita pela Folha. Dos 15 artistas mais vistos no YouTube entre 2014 e 2018 eu sou a 12ª artista brasileira mais vista no mundo. Me surpreendeu positivamente porque minha geração ainda está adaptando a essa linguagem. Mas fico feliz por representar bem a música brasileira e a música baiana.

Miguel Arcanjo Prado – O que está planejando para este ano?
Margareth Menezes – Este ano temos o projeto “Rebeldia Nordestina”, que é o projeto que venho nele há algum ano. Já fiz o número um e agora o número dois. Consiste na influência de compositores nordestinos em mim e na música popular brasileira. Comecei há dois anos, homenageando Caetano e Gil, que faziam 50 anos de carreira, com mais de 70 shows, que circulava em teatros, um show acústico, mas não intimista. Gravei um DVD com a Estrela do Mar e o Canal Brasil. Depois, comecei a pensar: por que não falar dos outros artistas dessa geração que me influenciaram? Então fiz o “Rebeldia Nordestina 1”, com Belchior, Fagner, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Raul Seixas, Novos Baianos e Zé Ramalho. Estreamos em Fortaleza. Agora “Rebeldia Nordestina 2”, com artistas contemporâneos meus, Lenine, que fui a primeira artista a gravar, Zeca Baleiro, Chico César, Roberto Mendes, Carlinhos Brown, Flávia Venceslau e músicas minhas também. É este que vamos circular em São Paulo em abril no Sesc Pompeia, dias 12 e 13.

Miguel Arcanjo Prado – Você cuida de um projeto social onde nasceu?
Margareth Menezes – Sim. Tenho o Mercado Iaô, projeto criado há quatro anos, organização que presido, e temos a meta de fazer a reforma do espaço físico na Ribeira, na Península de Itapagipe, onde nasci, na Cidade Baixa de Salvador. É uma área carente de espaço de cultura e lazer. Temos todas as vertentes artísticas, gastronomia, moda, artesanato, música, poesia, teatro, lançamento de artistas novos. A proposta é que seja espaço interativo e economia criativa.

Miguel Arcanjo Prado – Você vai para fora este ano?
Margareth Menezes – Este ano temos apresentações na Europa, nos Estados Unidos e Canadá. Vou a um workshop na Califórnia para falar sobre música brasileira, vem gente do mundo inteiro e artistas chamados para dar aula. Já fui dois anos. Vou fazer um workshop para música do Recôncavo. Na Europa, já sei que vou para Alemanha, Itália e Holanda.

Miguel Arcanjo Prado – O que acha do fim das cordas nos blocos de Carnaval, uma tendência observada este ano em Salvador?
Margareth Menezes – Não é um novo momento. É um retorno ao que era antes. O Carnaval foi criado assim, sem cordas, é uma festa antiga, não é nova. Houve todo um processo de renovação com o advento do trio elétrico, que foi o marco principal do que ocorreu na Bahia na minha geração. O surgimento do palco ambulante no qual o som reverberava por quilômetros e a música fosse ouvida por todos. Foi sem cordas com Novos Baianos e os primeiros trios. Antes, o movimento era nas ruas; nos clubes ficavam as pessoas mais abonadas. Com o trio elétrico, o povo dos clubes quis vir para as ruas, porque todo mundo quer ir atrás do trio elétrico. Nos anos 1980 os empresários profissionalizaram e comercializaram isso, que também foi um processo importante para a música baiana, e houve uma articulação da música dançante na Bahia, que se culminou no movimento identificado como axé music, com expressões de vários ritmos.

Miguel Arcanjo Prado – Qual é seu ritmo?
Margareth Menezes – O meu trabalho é o afropopbrasileiro. Esse é meu estilo musical. Não é só Carnaval que a gente canta. O trabalho tem uma pesquisa de identidade, comportamento e cena pop contemporânea. Quando Paul Simon, Michael Jackson e David Byrne vieram para a Bahia, para Salvador, eles não vieram atrás do Carnaval, mas sim atrás da música baiana, dessa grande mistura rítmica que se faz na Bahia desde sempre. Eles vêm atrás da musicalidade que acontecia naquele momento através dos blocos afros que pegavam o tambor e faziam um grito de liberdade, um comportamento moderno e contemporâneo.

Miguel Arcanjo Prado – Qual a importância dos blocos afro?
Margareth Menezes – Os blocos afros revelaram tudo para nós. Quando David Byrne me ouviu cantando “Faraó” e “Elegibô”, me convidou para abrir os shows dele internacionalmente. Foi a primeira vez que o samba reggae saiu, fui a primeira artista a ir para fora. O Paul Simon, fez a parceria com o Olodum e fez o disco “Graceland” em 1986, que até hoje é atemporal, mostrando toda a profusão rítmica embutida, que estava escondida e floresceu. Conseguimos identificar uma palheta enorme de ritmos nos blocos afro, o Ile Aiyê, o Muzenza, o Malê Debalê, o Olodum, a Banda Didá. O Neguinho do Samba foi o grande maestro disso, que conseguiu criar uma identidade auditiva percussiva para o que chamamos hoje de samba reggae.

Miguel Arcanjo Prado – Você é uma profunda conhecedora da música feita na sua terra.
Margareth Menezes – A minha maneira de me relacionar com a música é ter uma observação profunda do que me propus a fazer, trabalhar com música. O carnaval é um momento da minha trajetória artística, meu trabalho é com música, cantei na noite, voz e violão, tenho uma visão de ter um padrão de qualidade musical, com quem trabalha comigo, com o que canto e faço.

Miguel Arcanjo Prado – O boom do axé foi importante? E qual é o futuro do axé?
Margareth Menezes – A minha geração teve todos esses elementos no grande boom da axé music. Luiz Caldas, Sarajane chegaram e tomaram conta do Brasil, com essa musicalidade toda, com o palco que vai aonde o povo está. Durou um tempo muito legal. Hoje vem outras figuras, novas gerações, com outras características, a nova geração não está muito preocupada com o axé, é natural que cada geração busque sua identidade e sua expressão. O axé morreu? Não sei. O que digo é que a música baiana não vai acabar nunca! As relações empresariais e comerciais mudaram, hoje o artista tem sua independência nas redes sociais, o mundo mudou. Tem artista que não aparece na televisão e lota todos os shows. Cada artista tem de buscar sua expressão, saber seus limites. A pessoa que quer cantar tudo não pesquisa. Eu tenho meus limites, mas também gosto do novo e da experimentação.

Miguel Arcanjo Prado – Como vê o domínio do sertanejo nas paradas de sucesso?
Margareth Menezes –  Depende da rádio que a pessoa ouve. Tem rádio que toca várias coisas. Existe uma questão que as rádios comerciais, nas quais consegue-se negociar espaço, toca quem tem mais dinheiro. Mas tem muitos artistas chegando na música brasileira. O mundo hoje caminha de forma diferente. A questão do sertanejo é que eles têm o poder da grana, vêm de Estados com grandes investimentos, mas não acho que o povo brasileiro ouça só sertanejo. Vejo a força muito grande das mulheres, do funk. Vejo gente fazendo hip hop de muita qualidade, tem o Rael, BNegão, Baiana System. Não fico ligado ao que está mais popular, mas no que está mais interessante.

Miguel Arcanjo Prado – O que acha de Anitta, Jojo Todynho e Pabllo Vittar?
Margareth Menezes – Elas estão no tempo delas. Chegaram num tempo maravilhoso que está tudo aberto. Tem coisa que não faria, mas a geração delas está com essa liberdade toda, então, aproveita o que for possível aproveitar. Comigo é assim também, tem gente que não gosta, fala “é música baiana, é axé music”. Não dá pra agradar todo mundo. O Brasil é esse celeiro, tem para todos os gostos. Imagina viver um país que não tem muita variação? Estamos juntos, mas não misturados, como diz um amigo meu. Existe necessidade de espaço para as pessoas se expressarem, democracia é isso.

Miguel Arcanjo Prado – Como vê a nova geração de negros empoderados?
Margareth Menezes – O Brasil é uma nação nova, que vem crescendo e se posicionado. Quando você dá voz às pessoas elas defendem o que acredita. Num país em que mais de 55% da população se identifica como negro afrodescendente, tem de deixar essas pessoas se manifestarem e mostrarem sua cara. Antes era: vamos deixar o negro sempre pobre e o branco sempre rico. Essa geração nova vem quebrando tabus. É necessário médicos, advogados que tenham a consciência de ter sofrido o que as pessoas que eles atendem sofrem. Acho muito positivo e que tenha cada vez mais negros nas classes média e alta. Tem gente que é racista e vai ser a vida toda, mas não pode ultrapassar nossos direitos. É preciso lutar muito para atingir uma normalidade.

Miguel Arcanjo Prado – Você tem consciência de que é referência para muitos negros?
Margareth Menezes – Sim. Mas também falo que as pessoas tem que começar a tomar atitude por elas, cada um pode fazer seu movimento e mudar sua realidade. Eu vou às escolas para falar e digo: você tem de fazer seu movimento. Minha ação pode servir de referência, mas sua mudança será fruto da sua ação. Não dá para esperar cair do céu. Aqui na Bahia sou uma artista que não teve oportunidades iguais, conquistei tudo graças à minha ousadia, de não aceitar e conquistar, abrir possibilidades. Nunca me coloquei no lugar de que sou a preta coitadinha da Bahia. Não sou! Não gosto de sentimento que preto é um coitado! Não somos, não!

Miguel Arcanjo Prado – Você e os blocos afros da Bahia foram precursores no orgulho do negro.
Margareth Menezes – Com certeza. Naquela época, o Ilê Aiyê quando foi criado é porque negros não saíam nos blocos. Eu me lembro de ter sete anos, e o padrinho da minha irmã era diretor da fábrica onde meu pai trabalhava, lembro da gente na Avenida Sete, vendo um bocado de negro com roupa branca, e a polícia não deixava os caras andarem. Era só negão mesmo, tudo de branco. Era só negão no Ilê Aiyê, eles precisavam dessa afirmação. Naquela época não podia ter cabelo assim igual a gente tem agora. Estou maravilhada com a liberdade dos cabelos dessa nova geração. Eu com 14, 15 anos comecei a fazer teatro e raspei o cabelo. Foi minha primeira reação artística, meu pai quase morre. Deixei meu cabelo crescer natural. Eu sempre fui assim. O Ilê Aiyê, o Malê Debalê, o Olodum, o Muzenza levantaram a autoestima do negro. Eles contaram a história do negro, isso não tinha. Pudemos redescobrir a África, Madagascar, Moçambique, Egito, falar de reis e rainhas africanos. Foi muito importante o surgimento e o fortalecimento dos blocos afros e até hoje seguem com seus trabalhos sociais. Eu digo sempre a Vovô do Ilê, a João Jorge, vocês são heróis que trabalham por uma sociedade mais justa. Os blocos afros aproveitaram o carnaval para mostrar a cara da discriminação racial no brasil. Isso é louvável e inteligente. É lutar Davi e Golias e conseguir vencer o gigante.

Margareth Menezes – Foto: Divulgação

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