Análise: Genial, Belchior foi artista coerente do início ao fim
Por Miguel Arcanjo Prado
“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. O verso cortante que encerra “Como Nossos Pais”, que Elis Regina interpretou de forma definitiva no disco e no show “Falso Brilhante”, de 1976, marcou a carreira do compositor cearense Belchior. E, talvez, este verso seja um bom ponto de partida para começar a tentar compreendê-lo.
A triste notícia neste frio domingo da morte de Belchior, aos 70 anos, sem possibilidade de despedida prévia, nos faz constatar o óbvio: seu maior diálogo conosco é sua potente obra, que fala diretamente ao coração de quem sabe entender aquela melancolia que habitava o coração do artista.
Belchior bradou em suas músicas verdades desconcertantes, filosofou sobre a simplicidade da vida, rejeitou o sistema hipócrita, disse não ao jogo midiático — tantas vezes cruel com o artista–, e preferiu, ao fim, se isolar da convivência social e dos holofotes, nos quais jamais acreditou.
Belchior escolheu ser “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, vindo do interior”. “Teu infinito sou eu”, definiu em “Paralelas”.
Quando “Como Nossos Pais” estourou, Belchior já vivia no Rio havia uma década e sua carreira de cantor não parecia decolar. A canção, com uma autocrítica impiedosa da geração que revolucionou os anos 1960 e depois perdeu todas as utopias, foi oferecida por ele mesmo a Elis Regina, que o recebeu em sua casa.
Belchior cantou para ela aquela que seria uma das letras mais fortes já escritas na Música Popular Brasileira. Os olhos de Elis brilharam. Sagaz, sabia que estava diante de diamante bruto, que apenas precisava ser lapidado por sua voz e interpretação ímpar para tornar-se o maior sucesso de sua carreira. Tanto que resolveu abrir o disco e o show “Falso Brilhante” com a música, tornando-a imortal.
O êxito abriu as portas da MPB para Belchior, que conheceu o sucesso popular no final da década de 1970 e começo da década de 1980. Mas, aos poucos, foi se decepcionando com as artimanhas de uma carreira artística, que não resistiram a seu olhar filosófico implacável. Decidiu sair de cena e se isolar do mundo.
Ainda em “Como Nossos Pais”, o compositor escancara sua decepção com os homens e seus discursos utópicos que não se sustentam diante de suas atitudes: “E hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal”. Ou ainda: “Acreditou no sonho da cidade grande e enfim se mandou um dia”, verso de “Notícia de Terra Civilizada”.
Apesar de companheira da tristeza e da decepção, a obra de Belchior também mostra que ele acreditou no amor, “porque o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual”, como definiu em “Divina Comédia Humana”. Porque “amar e mudar as coisas me interessa mais”, como encerra “Alucinação”.
A despedida de Belchior, que morreu longe de todos nós por escolha própria, nesta que é sua última performance artística, só comprova que ele foi um artista genial e coerente do início ao fim, que só queria ser um homem normal, que jamais acreditou no endeusamento de artistas. “Eu sou como você que me ouve agora”, explicou, didaticamente, em “Fotografia 3×4”. A verdade crua deste homem profundo já faz uma falta gigante.
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