Entrevista de Quinta: “A ferida do desamor está aberta”, diz Zé Henrique de Paula

O diretor Zé Henrique de Paula - Foto: Annelize Tozetto/Clix

O diretor Zé Henrique de Paula – Foto: Annelize Tozetto/Clix

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

O diretor, ator, cenógrafo e figurinista Zé Henrique de Paula nasceu em Sorocaba, no dia 12 de outubro de 1970. Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie e pós-graduado em Artes Cênicas pela Escola de Comunicação e Artes da USP, Zé Henrique teve seu primeiro contato profissional com o teatro através da cenografia, quando foi fazer um estágio com J.C. Serroni.

Desde 2005 está à frente do Núcleo Experimental, grupo com sede na rua Barra Funda, 637. São mais de 20 peças produzidas, 61 indicações a prêmios e um público direto de mais de 120 mil espectadores. O Grupo já montou textos inéditos e também pesquisa a releitura e adaptações de obras clássicas, como é o caminho escolhido para seu projeto atual, “Romeu e Julieta –  De Almas Sinceras a União Sincera Nada Há que Impeça”, adaptado por ele, a partir da obra de William ShakespeareA obra vem após o sucesso retumbante “Urinal, o Musical”, do ano passado.

Nesta Entrevista de Quinta, Zé Henrique fala sobre sua trajetória, seus mestres, o Brasil atual e a falta de amor que precisa ser combatida com teatro inteligente. Leia com toda a calma do mundo.

Zé Henrique de Paula como ator em "Urinal, o Musical", sucesso que dirigiu - Foto: Ronaldo Gutierrez/Divulgação

Zé Henrique de Paula como ator em “Urinal, o Musical”, sucesso que dirigiu – Foto: Ronaldo Gutierrez/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como foi conhecer o teatro entrando pela porta da cenografia?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — Comecei dando sorte, porque fui aluno e estagiário de um dos grandes da cenografia, J.C. Serroni, dentro da estrutura do CPT [Centro de Pesquisa Teatral, de Antunes Filho], nas montagens de “Nova Velha Estória” e “Trono de Sangue”. É pouco dizer que isso foi uma escola, porque Serroni me ensinou mais que cenografia. O próprio fazer teatral e, principalmente, o respeito pelo teatro, foram coisas que aprendi e exercitei ali, naqueles anos. A formação acadêmica em Arquitetura e o trabalho de cenografia com o Serroni acabaram por me dar ferramentas de direção e encenação que utilizo até os dias de hoje.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Ter um grupo com mais de 10 anos de história te trouxe grandes parcerias como a Fernanda Maia, que cuida da parte musical dos seus espetáculos, e a Inês Aranha, que colabora profundamente no trabalho de preparação dos atores. É importante ter parceiros de longa data dentro do teatro?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — Leva muito tempo para encontrarmos nossos pares no teatro e, nessa jornada, tive a felicidade de formar essas duas parcerias – com Fernanda e Inês – relativamente cedo. Isso cria um lastro de confiança que só é benéfico para o grupo e seus trabalhos. Com a Fernanda, especialmente no âmbito da música, nosso entendimento das necessidades de cada montagem é imediato, até porque, afinal, são quase 25 anos de fazer teatral compartilhado. Com a Inês, durante mais de dez anos, conseguimos aprimorar e testar uma série de ferramentas de trabalho na preparação dos atores que hoje é parte da essência dos trabalhos do Núcleo. Completados pela produção de Claudia Miranda e a luz de Fran Barros, o núcleo duro do Núcleo Experimental é um quinteto com mais de uma década de trabalho compartilhado e pesquisa bem definida.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Que montagens de outros diretores você considera mais significativas? Elas tiveram alguma influência no seu trabalho?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — No Brasil fui influenciado por dois diretores – Eduardo Tolentino, do Grupo Tapa, e Antunes Filho, do CPT. O recente período que passei estudando em Londres me abriu as portas para novas referências em relação a diretores estrangeiros, em especial os britânicos Richard Eyre (grande diretor de textos clássicos) e Katie Mitchell (profunda inovadora desses mesmos clássicos através de instigantes releituras).

Cena da peça "Romeu e Julieta", em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental com direção de Zé Henrique de Paula - Foto: Ronaldo Gutierrez

Cena da peça “Romeu e Julieta”, em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental com direção de Zé Henrique de Paula – Foto: Ronaldo Gutierrez

MIGUEL ARCANJO PRADO — Falando em releitura, “Romeu e Julieta” foi inspirado no mito de Píramo e Tisbe, assim como muitos textos de teatro que vieram a partir da mitologia. Qual a importância dos mitos e arquétipos (imagens primordiais, segundo Yung) para a história teatro e sua preservação?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — Trabalhando jovens atores desde janeiro com Shakespeare no nosso projeto contemplado pelo Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, pudemos perceber que a universalidade de determinadas obras está intimamente ligada à maneira pela qual essas obras abarcam as ideias de mito e arquétipo. É quase como se as mesmas pulsões humanas precisavam ser revisitadas com certa frequência, a fim de que possamos compreender esses movimentos essenciais do ser humano e, desse modo, compreendermos a nós mesmos. Revisitar com o intuito de refletir e conseguir seguir em frente.

MIGUEL ARCANJO PRADO — A dor sofrida pelo amor interrompido dentro da história de “Romeu e Julieta” é atemporal, mas você acha que nas circunstâncias contemporâneas essa dor é vivida de forma diferente?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — Trabalhamos basicamente com as razões pelas quais esse amor é interrompido: a proibição. Por que proibir um amor? De qual moral elencar os princípios que vedam o amor e incentivam o desamor? E nesse sentido, nada mais contemporâneo, nada mais atual e contundente, especialmente na história recente do Brasil. A tão falada polarização, o acirramento de ânimos e as ondas cada vez mais frequentes de violência e intolerância fazem com que Shakespeare tenha algo a nos dizer com “Romeu e Julieta” que pode, inclusive, ser mais incisivo do que poderíamos supor. Quando uma cidade precisa repetir para si mesma “Ainda existe amor em SP”, é porque a ferida do desamor está aberta e sua cicatrização não é automática. Mobilizar-se para o amor, hoje em dia, exige determinação de propósito e muita força de vontade.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Quais as dificuldades para se manter um grupo em atividade constante por mais de 10 anos?
ZÉ HENRIQUE DE PAULA — Obviamente um dos principais desafios é o financeiro, ainda mais para aqueles que têm uma sede, como é o caso do Núcleo. Mas há outras dificuldades não menos importantes: a revisão permanente e honesta da dinâmica de seus componentes, a contínua reflexão sobre os processos artísticos e a revitalização da pesquisa são alguns dos pontos de debate constante entre nós. Mas os ganhos são sempre maiores do que quaisquer dificuldades e, por isso, continuamos a luta e a resistência por um teatro que alie entretenimento e inteligência.

Fachada do Núcleo Experimental, na rua Barra Funda, 637 - Foto: Divulgação

Fachada do Núcleo Experimental, na rua Barra Funda, 637 – Foto: Divulgação

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