Grito de “Fora, Temer” e galos vivos marcam abertura do Mirada em Santos

Galos são manipulados durante a peça "4", que abriu o Mirada - Foto: Divulgação

Galos são manipulados durante a peça “4”, que abriu o Mirada em Santos – Foto: Divulgação

Por Miguel Arcanjo Prado
Enviado especial a Santos (SP)*

A abertura da quarta edição do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos na noite desta quinta (8), no Teatro do Sesc Santos, no litoral paulista, foi marcada por gritos de “Fora, Temer” e também pela revolta de alguns espectadores em verem galos vivos sendo manipulados pelos atores da peça espanhola “4”, dirigida pelo argentino Rodrigo García com o grupo La Carnicería Teatro.

A obra é definida por García como uma “crítica ao consumismo” e traz cenas polêmicas, como a que faz uso dos animais. Além de manipular os bichos, que possuem tênis em suas patas, os atores enfiam as aves dentro da calça e da camisa.

Alguns espectadores, revoltados, deixaram o teatro enquanto a cena com as aves era encenada. Uma mulher saiu e gritou no saguão do Sesc Santos que “não tolerava ver animais serem maltratados dessa forma”, antes de ir embora.

A peça também tem duas crianças em cena vestidas como adultas e imagens gigantes de uma vagina projetada em um telão (o quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet, de 1866) e sendo golpeada por uma bolinha de tênis. “4” tem nova apresentação nesta sexta (9), às 21h, no Teatro do Sesc Santos.

Democracia e “Fora, Temer”

Antes da apresentação da peça, o evento foi aberto com discurso do gerente regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda. Em sua fala, ele afirmou que em um mundo embriagado “por conflitos e tensões”, o Mirada, com sua proposta de diálogo e de respeito ao outro, “fortalece a democracia”.

Assim que ele pronunciou a frase, parte expressiva do público que lotava os 785 lugares do Teatro do Sesc Santos começou a gritar “Fora, Temer”. Uma jovem ainda berrou: “Democracia pra quem?”.

Galos usam tênis na peça "4", do Mirada - Foto: Divulgação

Galos usam tênis na peça “4”, do Mirada – Foto: Divulgação

Quando o silêncio foi retomado, Miranda continuou seu discurso, no que foi seguido pelo do secretário de Cultura de Santos, Fábio Nunes. Este falou da importância para a cultura na cidade da parceria entre a Prefeitura de Santos e o Sesc na realização do evento. Ao ouvir outro grito de “Fora, Temer” vindo da plateia, Nunes afirmou: “Sem dúvida. Não há o que temer”.

Personalidades do teatro paulistano como Cacá Carvalho, Fernanda Azevedo, Luiz Fernando Marques, Rodolfo Lima e Fernando Kinas estavam na plateia, bem como boa parte da classe teatral da Baixada Santista, com nomes como Lourimar Vieira e Levi Tavares.

Mirada tem 43 peças de 12 países

“Somos latino-americanos”

Pouco antes de a cerimônia começar, Danilo Santos de Miranda conversou com o Blog do Arcanjo do UOL. A reportagem perguntou se o Mirada aposta em uma integração latino-americana justo em um recente contexto político brasileiro de afastamento deste discurso.

“Nós somos latino-americanos, quer queiramos, quer não. Não discuto detalhes sobre este tema do ponto de vista da questão política, embora tenha posição quanto a isso muito clara, mas acho que, se há uma ideia de afastamento [da América Latina], ela tem de ser absolutamente rejeitada, condenada. Porque nossa realidade é a mesma, nosso destino é o mesmo, nossas questões são as mesmas”, respondeu.

Miranda também falou sobre a importância da cultura neste momento de tensão política.

“A cultura é a grande força motriz de reflexão sobre valores. Sobre o que é a humanidade, a alteridade, por que respeitar o outro. Quais são as ameaçadas e problemas que dizem respeito a tudo isso. Portanto, tenho muita confiança de que a cultura possa facilitar esse caminho de reflexão profunda e com isso ajudar a nós todos pensarmos melhor sobre nossa realidade e com isso podermos construir um país melhor”, afirmou.

Danilo Santos de Miranda discursa na abertura do Mirada - Foto: Matheus José Maria

Danilo Santos de Miranda discursa na abertura do Mirada – Foto: Matheus José Maria

Integração com os vizinhos

Uma das curadoras e idealizadoras do Mirada, Isabel Ortega, brasileira radicada na Espanha, definiu o evento como “uma criança grande”. E ressaltou sua programação: “A qualidade dos espetáculos me surpreende. Há muita troca durante o Mirada”.

O espanhol Pepe Bablé, do Festival de Cádiz, que inspirou a criação do Mirada, e também curador do evento, lembrou que o festival ajuda a “quebrar antigas fronteiras e criar outras novas”. E se definiu “otimista” em relação à crise que tanto Brasil quanto Espanha enfrentam.

Emerson Pirola, da equipe de curadores do Sesc, falou: “Precisamos olhar para a história da América Latina e para a relação próxima que temos com Portugal e Espanha para refletirmos”.

Sergio Luís Oliveira, também da curadoria do festival, disse que “acredita no diálogo latino e ibero-americano”. “O Mirada se firma como uma bandeira de resistência e ampliação do diálogo na América Latina e pegando ainda Espanha e Portugal”.

“Há uma transição, uma revisão dos valores civilizacionais no Brasil, e o Mirada está dando um recado, para onde devemos ir, que é para o diálogo, para a aceitação do outro”, declarou.

A diretora Cibele Forjaz também deu sua opinião.

“O Mirada olha para a América Latina neste momento de ruptura. O papel de resistência das instituições culturais é muito importante neste momento. Temos de nos unir mesmo nas nossas diferenças contra o governo golpista. E principalmente: nenhum direito a menos. A luta do povo brasileiro e dos movimentos sociais está sendo atropelada. Depende de nós, artistas e produtores de cultura, uma resistência unida e organizada”, afirmou.

Peça "4" tem crianças em cena e também animais - Foto: Divulgação

Peça “4” tem crianças em cena e também animais – Foto: Divulgação

Troca e formação de público

Representantes de países participantes na programação também estiveram presentes na abertura do Mirada. Margarita Perez Villaseñor, cônsul do México em São Paulo, afirmou que o festival “é um esforço de diálogo fantástico”. “O vínculo do teatro mexicano e brasileiro é natural, mas temos de trabalhar cada vez mais para nos aproximarmos”.

Manoel Santalla Montoto, cônsul honorário da Espanha em Santos, lembrou que o país é o homenageado desta edição e que o Mirada forma público na cidade. “Tenho observado que muita gente que nunca foi ao teatro tem oportunidade de ter o primeiro contato com a linguagem durante o festival. Isso é muito importante”.

Ao fim do espetáculo “4”, o público acompanhou o dançante show da banda argentina Ninfas, compostas por mulheres de Córdoba. Com 43 espetáculos de 12 países, o Mirada vai até o próximo dia 18 de setembro.

Conheça a programação completa do Mirada

*O colunista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Sesc.

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