Entrevista de Quinta: “Mercado teatral não reconhece periferia; Peter em Fúria derruba abismos sociais”, diz William Costa Lima

William Costa Lima: teatro na periferia e no centro - Foto: Thais Moura/Divulgação

William Costa Lima: teatro na periferia e no centro – Foto: Thais Moura/Divulgação

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

A primeira vez que vi o diretor William Costa Lima foi em 2008. Em pleno Festival de Teatro de Curitiba, ele dançava com seu elenco no meio do largo da Ordem, para chamar a atenção do público para seu espetáculo de então, Primavera, com seu grupo Pequeno Teatro de Torneado.

Sete anos depois, ele segue aguerrido do mesmo modo com sua trupe, dessa vez indo aos quatro cantos da cidade de São Paulo com a peça Peter em Fúria, texto e direção assinados por ele. A obra teve circulação financiada pelo Prêmio Zé Renato, o que possibilita entrada gratuitas [veja serviço ao fim].

Espécie de Peter Pan da periferia, o espetáculo foi escrito pelo diretor durante o fim da adolescência, quando muitas questões atravessavam sua cabeça jovem.

Para tornar a peça realidade, se reuniu a 31 artistas, criando uma montagem que já teve temporada elogiada na região central de São Paulo e que lhe rendeu indicação ao Prêmio Shell.

Nesta Entrevista de Quinta, Lima fala sobre seu teatro, que busca colocar a periferia no centro do debate.

Leia com toda a calma do mundo.

Cena da peça Peter em Fúria, escrita por um jovem vindo da periferia e que virou diretor teatral: William Costa Lima - Foto: Ivan Stieltjes

Cena da peça Peter em Fúria, escrita por um jovem vindo da periferia e que virou diretor teatral: William Costa Lima – Foto: Ivan Stieltjes/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Porque fazer uma espécie de Peter Pan da Favela?
WILLIAM COSTA LIMA — Os mitos nos guiam. Os mitos guiam essências da natureza humana que parecem não sumir de nós. Quando os mitos são relidos dentro de conceitos sociais contemporâneos, a humanidade se reflete em doses de passado e de presente. Algo é apontado como possibilidade para o futuro e seguimos um pouco mais norteados. As favelas e as periferias concentram complexidades culturais pouco abordadas em nossas dramaturgias e eu sinto ânsia de ver lugares como onde cresci tendo representatividade. A priori eu escolho falar sobre elas porque o meu disparador se inspira também por aquilo que acontece nelas. Existem complexidades estéticas nesses lugares e se tudo isso me seduz cotidianamente, porque não torná-las públicas na forma de teatro potencializando reflexões humanas? Acredito que essa nossa mistura tem seduzido o expectador e isso nos interessa.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Com qual público a sua obra quer dialogar?
WILLIAM COSTA LIMA — Com o máximo de pessoas e de realidades. Quanto ao resultado de espetáculos, parece atender a uma gama muito ampla de pessoas. É comum vermos uma plateia formada tanto por alguns acadêmicos, como que por pessoas que nunca tiveram o contato com teatro. Encontrar o público é dividir a nossa pesquisa e ao dividir, desviamos nossos rumos e corremos o doce risco de nos tornarmos mais necessários e vivos. Isso evoca a possibilidade de através de uma experiência de troca tornarmos o nosso teatro mais abrangente e verossímil.

É comum termos na plateia acadêmicos e gente que nunca viu teatro, diz William Costa Lima - Foto: Thais Moura

É comum termos na plateia acadêmicos e gente que nunca viu teatro, diz William Costa Lima – Foto: Thais Moura/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você esperava que o espetáculo tivesse tanta repercussão?
WILLIAM COSTA LIMA — Acho que bem lá no fundo eu esperava. Não saí por aí gritando aos ventos porque, na real, as coisas se constroem com trabalho e não com certezas. Mas eu sempre torci para que o espetáculo reverberasse em muitas pessoas. Eu sou uma pessoa insegura e isso me faz duvidar das minhas escolhas. Duvidar de si para um artista é importante. Tenho a impressão de que quem duvida de si corre o risco de alcançar o outro. E eu desejo alcançar os outros. É aí que a minha escolha em ser um artista de outros artistas me acolhe e me segura em pé. O coletivo é inspirador e me traz o pouco de segurança que acredito ter. No fundo sabemos que esperamos algum tipo reconhecimento em tudo que fazemos. Desde o café que passamos para os amigos, ao espetáculo que ofertamos ao desconhecido. Repercutir é reverberar. Reverberar é se sentir um pouco mais vivo e necessário. E por fim, o efeito que o nosso espetáculo produz acabou alcançando e parece que irá alcançar lugares e pessoas que não imaginávamos. Isso pode me inspirar para que nos próximos processos eu conte com a possibilidade de que as coisas também podem dar certo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Vocês estão indicados ao prêmio Shell, como foi para vocês essa indicação? Ajudou o espetáculo?
WILLIAM COSTA LIMA — Eu me sinto reconhecido e ao mesmo tempo preocupado. Preocupado porque sinto que essa história pode ser longa e quero traçá-la com espaços para desvios significativos. Queremos ganhar o prêmio sim, mas isso é um fator resultante. E queremos que o nosso resultado artístico justifique toda e qualquer premiação. Sabemos que qualquer proposição para o mundo é feita de cotidiano; e o nosso cotidiano é feito de cenário pesado nas costas e um forte investimento nas relações humanas. Integrar um grupo é estar por inteiro e com essa indicação e tantas outras notícias positivas; alguns de nossos integrantes começam a perceber que a entrega vale a pena. Quando eu me desloco aos extremos da cidade, eu apenas acredito na possibilidade de encontrar pessoas que junto das minhas proposições dramatúrgicas irão criar esse nosso modo de tentar fazer um teatro esteticamente torneado por um discurso reflexivo e sensível. Quando eu me desloco de uma periferia para outra, não passa nunca em minha cabeça que aquilo possa nos dar uma indicação a um dos principais prêmios de teatro.

"Meu processo é afetivo, exige troca e envolvimento", diz William Costa Lima - Foto: Thais Moura

“Meu processo é afetivo, exige troca e envolvimento”, diz William Costa Lima – Foto: Thais Moura/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Está feliz?
WILLIAM COSTA LIMA — Fico feliz com o reconhecimento do meu trabalho como formador de artistas sob um conceito social. Que bom que as pessoas estão atrelando a nossa estética e a nossa ética como algo pungente capaz de refletir o homem contemporâneo. Isso nos torna mais vivos e nos dá mais confiança para ousar. É bom ouvir que fazemos um teatro poético que representa uma pluralidade cultural de nosso país. Existe uma coisa que eu preciso dizer: durante esses dez anos eu me senti premiado cotidianamente nas relações que estabeleci com esses artistas. Pode parecer piegas, mas o meu processo é afetivo e exige troca e envolvimento. A nossa formação exige mais do que uma formação tecnicista voltada para o mercado de trabalho teatral. Porque é esse mesmo mercado de trabalho que não reconhece a cultura da periferia como possível. Eu acho legítimo o processo histórico social de um cidadão e na hora de formar um artista isso é o que mais me seduz. Se tudo isso vier atrelado a uma tentativa de uma dramaturgia refinada e uma encenação inventiva; pode-se alcançar mais pessoas ainda e isso tem acontecido em nossas experiências. As escolas de teatro falam muito de teoria teatral e pouco de sociedade. Quem se afeta socialmente corre o risco de tornar-se um artista vivo, capaz de refletir os anseios de seu tempo e isso sim é muito mais necessário do que as lógicas desse cruel mercado de trabalho teatral. É preciso acreditar na possibilidade da experiência viva e não apenas na tradição e nos modismos teatrais. O teatro precisa voltar ao homem comum: somente assim o homem comum voltará ao teatro.

MIGUEL ARCANJO PRADO —Vocês estiveram na praça Roosevelt e agora nos CEUS. Os públicos são diferentes? Reagem de forma diferente à história?
WILLIAM COSTA LIMA — Os públicos são bem parecidos: diversificados. O que muda é que eles estão em situações diferentes e acredito que por isso eles reajam de maneiras diferentes. Porque são formas estruturais e comunitárias diferentes na qual o espetáculo é acolhido. Isso muda tudo. O teatro do centro é uma vitrine fixa onde o espectador, na maioria dos casos, se desloca para assistir ao espetáculo. Na periferia o espetáculo recebe a qualidade de forasteiro e isso é muito rico para o nosso grupo. Nós estamos adentrando um espaço que não está habituado com o teatro em seu cotidiano e isso nos exige um constante jogo de negociação com as especificidades cotidianas de cada lugar. E nós negociamos e depois disso o teatro vira só teatro. Deixa de ser teatro na periferia ou no centro. Por mais que nossa passagem por cada uma das comunidades seja breve, mesmo assim é impressionante o como os vínculos são construídos. Na periferia, o espetáculo acontece antes e depois, no teatro do centro é tudo muito mais recortado e breve. Particularmente eu não percebo diferença na recepção do espetáculo durante o espetáculo. O espetáculo conversa com o público em uma chave universal e isso tem derrubado alguns abismos sociais.

Cena de Peter em Fúria: "O espetáculo tem derrubando abismos sociais" - Foto: Ivan Stieltjes

Cena de Peter em Fúria: “O espetáculo tem derrubando abismos sociais” – Foto: Ivan Stieltjes/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — O que vocês querem falar com a peça?
WILLIAM COSTA LIMA — Eu vou responder à pergunta no singular, mas acredito que resposta real teria de ser no plural. Somos muitos e cada um de nós dispõe de um querer diferente com esse espetáculo. Quando eu escrevi a primeira versão do espetáculo eu tinha 18 anos e era morador de uma periferia. As coisas não estavam fáceis para mim e investigar os sonhos através dessa primeira dramaturgia de Peter em Fúria foi o meu acalanto. Por isso, grande parte da dramaturgia do espetáculo é lírica e jovem. Eu via o teatro como possibilidade lúdica de transformação da realidade. Depois de dez anos muita coisa mudou. Ficaram reminiscências do sonho e vieram apontamentos sociais que surgem quando nos dispomos em fazer teatro de grupo. E se eu tivesse de me arriscar alguma fala em nome do grupo, eu diria que o trabalho parte de uma necessidade poética de afirmação da estética que se inspira nas periferias. É uma arte que não parte do pressuposto da defesa e sim da afirmação de que a dramaturgia e a produção teatral também pode contemplar o homem comum revirado por alguns traços de “pólvora e poesia”.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como foi a escolha do elenco? Houve alguma surpresa?
WILLIAM COSTA LIMA — Surpresa temos todos os dias. Ainda mais quando lidamos com esse processo de formação de nossos próprios artistas. O processo decide quem faz o que no espetáculo. Os integrantes torcem uns pelos outros e os personagens desse espetáculo foram moldados para cada realidade de cada artista. E se temos que substituir tentamos contemplar esse processo de adaptação também. O Pequeno Teatro de Torneado é um coletivo de artistas-criadores surgido de um projeto de pesquisa que tinha como foco questões diretamente relacionadas à infância, juventude e adolescência. O amadurecimento do coletivo levou à consolidação de um grupo de teatro que estabeleceu e estabelece um processo próprio na formação de seus artistas. Toda essa experiência gerou uma pesquisa intitulada A Dramaturgia dos Moleques, que formou dezenas de jovens artistas, resultou 17 experimentos cênicos, sete espetáculos. Não importa se o fulano já se sente um artista formado. Aqui a questão pedagógica é eterna. Artistas e personagens estão sempre se instituindo. Nada é fixo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Porque você faz teatro?
WILLIAM COSTA LIMA — Porque desde criança eu não sei parar quieto.

"Faço teatro porque desde criança não sei parar quieto", diz William Costa Lima - Foto: Thais Moura

“Faço teatro porque desde criança não sei parar quieto”, diz William Costa Lima – Foto: Thais Moura/Divulgação

Serviço: 
Peter em Fúria

Sede do Grupo Alma – Dias 7 e 8 de novembro, sábado e domingo, às 17 horas. Endereço – Rua Cristal da Rocha, s/n – Cohab 2 – Itaquera. Telefone para informações – (11) 2056-0253. Capacidade – 100 lugares.
Sede da Cia de Teatro de Heliópolis – Dias 14 e 15 de novembro, sábado e domingo, às 19 horas. Endereço – Rua Silva Bueno, 1523 – Heliópolis. Telefone para informações – (11) 2060-0318. Capacidade – 100 lugares.
CEU Inácio Monteiro – Dias 21 e 22 de novembro, sábado e domingo, às 16 horas. Endereço – Barão Barroso do Amazonas, S/N – Cohab Inacio Monteiro. Telefone para informações – (11) 2518-9012. Capacidade – 400 lugares.
Circo Escola São Remo – Dias 11, 12 e 13 de dezembro, sexta, às 19 horas, sábado e domingo, às 17 horas . Endereço – Rua Aquinaés, 13, Butantã. Telefone para informações – (11) 3765-0459. Capacidade – 100 lugares.
Tendal da Lapa – Dias 18, 19 e 20 de dezembro, sexta, sábado e domingo, às 20 horas. Endereço – Rua Constança, 72 – Lapa. Telefone para informações – (11) 3862-1837. Capacidade 100 lugares.
Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso – Dias 15, 16, 17, 22, 23 e 24 de janeiro, sextas-feiras, sábados e domingo, às 20 horas. Endereço –Avenida Deputado Emílio Carlos, 3641. Telefone para informações – (11) 3984-2466. Capacidade 100 lugares.
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