Sem título, porque não há como nomear

Após passar pelo FIT-BH, obra peruana Sem Título - Técnica Mista foi destaque no Mirada - Divulgação

Por Leonardo Kildare Louback, de Belo Horizonte
Especial para o Atores & Bastidores*

Yuyachkani, estou pensando, estou recordando. Assim se traduz o nome do grupo peruano de 42 anos que aportou mais uma vez no Brasil para se apresentar no Mirada – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas de Santos, no fim de semana passado, depois de uma belíssima passagem por Belo Horizonte, integrando a programação do FIT (Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de BH), com seu trabalho Sem Título – Técnica Mista.

O público adentra o espaço sem saber se ali já começa ou se espera começar. A primeira opção é a que vale. Vitrines expõem a história do Peru, como arquivo vivo de uma memória em ebulição. No espaço principal onde se passa o espetáculo, se veem já em cena todos os atores, espalhados, observados. Dali se iniciará uma mudança consecutiva e rápida de cenas que literalmente abrem caminho por entre o público que muitas vezes nem sabe pra onde ir, como metáfora eficaz do que a história faz com seu povo. Atropelo. Fragmento. E o furor de Teresa Ralli.

Um ator, do alto, escreve as histórias contadas pelo povo peruano. Máquina de escrever parece tiro. A força dos gestos que nenhum ator desperdiça. Para certas histórias certas não há espaço para erro de desatenção. Um instrumento típico soa. Na imagem da quádrupla dos atores/personagens cor de terra, nos andinamos e esquecemos até que é teatro.

Qual o limite? A belíssima aparição da Virgem Maria, encarnada pela atriz Débora Correa, nos tira voz e quase até pensamento. Roupas bordadas com textos, iluminadas no escuro do espaço e da história da violência contra o outro. Até quando este vale de lágrimas aonde eu nunca disse pra me trazer? E quando a gente se encontrará com os demais, na beira de uma manhã eterna?

Como tudo que se refere ao Yuyachkani, não há clichês. Nem mesmo certas nomenclaturas. Segundo as palavras de Jorge Baldeon, responsável pela ambientação do espaço: “Não há cenógrafos, figurinistas, não há objetos cênicos, são elementos plásticos que aportam à atmosfera igualmente que a entrada. É documentação fragmentada, que gera no espectadore mais texturas que uma leitura linear do tema. É uma introdução à obra cênica.”

Nos figurinos-indumentárias está bordada a história do Perú, e para ler, as lanternas dos outros atores nos direcionam. Em espanhol. Em camadas que não amenizam. 140.000 mulheres camponesas, índias, esterilizadas à força por Fujimori. 69.000 peruanas e peruanos mortos pelo Estado. O quechua é falado como legitimação do discurso de desforra. Houve perda humana aos montes, originária de atropelo e exclusão. 17 de janeiro de 1888, a invasão chilena em Chorillos.

Combater o esquecimento é fazer justiça, disse um dos atores do alto de sua máquina-arma. Um militar em pernas de pau estende sua mão enorme para o povo. “Os mortos que matastes gozam de boa saúde”, se lê onde antes se apoiava seu corpo gigante. Bandeira hasteada, bandeira de roupas brancas e vermelhas dos mortos.

Como no Brasil, os políticos não prescindem nem de fala. As máscaras que invadem o palco falam por si. Os gestos e rostos estáticos dizem da essência de uma política latino-americana da corrupção e do deboche na anulação do outro. E no leilão se vende até o corpo. E se faz mágica muito bem feita, para nos distrair e escancarar a habilidade de persuasão dos nossos grandes homens de planaltos ou serras.

O dinheiro falso voa pelo espaço cênico advindo de uma caixa de Banco Imobiliário. Dinheiro virtual, como o nosso mesmo o é, sem valor, incontável e passível de nos ser tomado assim, brincando. E grita a especulação em torno de nossos bens materiais e a favor de nossa exploração sem fim. E com acidez feroz, a mais moderna música descaracterizada, sem pátria, anima a festa da depravação política, com a qual também nós brasileiros estamos absurdamente acostumados.

Até no chapéu se pinta história. Os textos das paredes se repetem nas vestes, enquanto as próprias paredes são iluminadas. Tudo simultâneo, como a própria intercalação de cenas de épocas distintas, que traçam o enredo múltiplo, aparentemente desconexo de uma dramaturgia dos sons, do espaço e do corpo estonteantes. Mas acaba em festa. Festa da não desmemorialização de si e da própria história de um grupo não composto somente de artistas, mas de povo, guiados pelas habilidosas mãos do diretor Miguel Rubio Zapata.

A memoria é seletiva. Nada tão maravilhoso como derrubar fronteiras e destruir o egoísmo. A memória precisa de veículos e, com o acordeom, a religiosa canta cancíon desconhecida. Seguirei me recordando de ti, Yuyachkani. Koroshoko.

*Leonardo Kildare Louback é ator, dramaturgo e tradutor. Ele escreveu esta crítica a convite do blog.

Mirada leva 100 mil ao teatro em Santos

Leia a cobertura completa do Mirada no R7

Veja também como foi a cobertura do FIT-BH

Confira a coluna Por trás do pano – Rapidinhas teatrais

 

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1 Resultado

  1. Que crítica linda, assim, dá muita vontade de conhecer o grupo, que realmente foi iluminado pela brilhante escrita desse convidado.

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