Inventivo, Bichado põe o dedo na ferida da solidão
Por Miguel Arcanjo Prado
No Brasil, cerca de 11,6% da população vive só. Desses, 1,6 milhão estão no Estado de São Paulo. E é na capital paulista, com seu ritmo frenético e frio, que está a síntese da vida solitária brasileira.
Apesar de ambientado em uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos, o espetáculo Bichado dialoga com a capital formada por migrantes ao trazer a crueza que está no aprender a ser só. O espetáculo é uma das boas surpresas de 2012 nos palcos paulistanos.
A obra está em cartaz no novíssimo Teatro do Núcleo Experimental, na Barra Funda.
A começar pelo caminho entre a estação do metrô Marechal Deodoro e a rua quase deserta onde está instalado o teatro, tudo leva o espectador a entrar no clima da peça dirigida pelo inventivo Zé Henrique de Paula.
Com produção caprichada de Sergio Mastropasqua, ele conseguiu traduzir com personalidade própria o texto do premiado norte-americano Tracy Letts.
Assim que entra na diminuta sala, o público se depara com a ação cênica em curso. Logo, embarca na história, convidado pela sedução presente no colorido do figurino e do cenário, que reproduz de forma naturalista o quarto de hotel onde vive garçonete decadente Agnes, interpretada por Einatt Fallbel.
Com vigor e verdade impressionantes, a atriz conquista o público como aquela mulher perdida no mundo e que, diante de tal constatação, se refugia nas drogas como forma de esquecer a mediocridade cotidiana.
Apesar do naturalismo do cenário, a obra ganha ares de realismo fantástico quando o que soaria surreal torna-se crível. E isso é feito pouco a pouco. Ponto para o texto e para a direção.
Tudo muda na vida solitária de Agnes quando aparece na vida dela o desertor da Guerra do Golfo Peter, interpretado por um intenso Paulo Cruz. Não é preciso muito para a carente garçonete se envolver com o rapaz. O problema é que o forasteiro vive em estado constante de perturbação, crente que foi cobaia de uma nova arma biológica que o teria deixado “bichado”.
A paranoia do personagem serve de metáfora para o que muitas vezes acontece no mundo tão conectado e, ao mesmo tempo, distante dos dias de hoje. Tal qual Peter, que não aceita ser um mero soldado incompetente, dando para si importante papel de vítima do mundo militar, muitos personagens do mundo contemporâneo tentam seus momentos fugazes de atenção nas redes sociais da vida, para sublimar o vazio da derrota social concreta.
No espetáculo, para não se ver só outra vez, a garçonete incorpora o discurso do ex-soldado, embarcando em uma relação doentia sem volta. Relação esta que supre a necessidade de encontrar algum sentido para a vida sem esperanças que leva, nem que seja o compartilhamento – num primeiro momento pouco crível e, depois, cheio de veracidade – das ideias do rapaz.
O afinado elenco preparado por Inês Aranha ainda tem Alexandre Freitas (impagável como o ex-marido machão e bandido de Agnes, que faz uma entrada no palco que demonstra criatividade da direção), Adriana Alencar (convincente como a amiga lésbica R.C da garçonete) e Rodrigo Caetano (que mergulha de cabeça na pequena cena surreal e precisa que faz na obra ao lado do casal em transe).
Apesar de denso, o espetáculo tem vários momentos bem-humorados. E é desse humor que nasce a identificação do público com muito do que está por detrás daquelas situações absurdas num primeiro olhar. A direção consegue respiros importantes, como os números musicais que trazem canções ao vivo de Amy Winehouse e Britney Spears, representando as “viagens” dos personagens.
A tal Guerra do Golfo – que torna o espetáculo parte da trilogia da guerra proposta por Zé Henrique de Paula, ao lado de Casa Cabul (Afeganistão) e As Troianas (2ª Guerra) – serve apenas de desculpa para se discutir algo muito mais universal: a tristeza que um ser humano solitário sente. E este é o ponto forte da obra.
A montagem do Núcleo Experimental faz a solidão de Agnes e seu desespero para supri-la soar cortante em uma cidade fria como São Paulo, onde muitos vivem seus dramas solitários trancafiados nas milhares de janelas dos apartamentos da Selva de Pedra.
O que a obra de fato diz, sobretudo com o final impactante, é que somos seres sociais, com desejo de amar e de ser amado. De compartilhar a vida com o outro. Nem que para isso precisemos perder nossas próprias vidas.
Bichado
Avaliação: Ótimo
Quando: sábado, às 21h. Domingo, às 19h. Segunda, às 21h. Até 6/8/2012
Onde: Teatro do Núcleo Experimental (r. Barra Funda, 637, Metrô Marechal Deodoro, São Paulo, tel. 0/xx/11 3259-0858)
Quanto: R$ 30
Classificação: 16 anos
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Sua descrição da peça me deixou com muita vontade de ver. Você cita São Paulo, mas poderia ser Brasília. Beijos!
Sim, Josie, poderia ser qualquer grande ou pequena cidade onde alguém se encontre tão sozinho como a protagonista da peça. É forte. Dizem que a obra vai voltar. Venha para cá assistir! Um beijo!