Morre Simon Magalhães, grande artista que o Brasil não soube aproveitar

Simone Magalhães - Foto: Humberto Araújo/Divulgação - Blog do Arcanjo
Morre Simon Magalhães, grande artista que o Brasil não soube aproveitar © Humberto Araújo Festival de Curitiba Arquivo Blog do Arcanjo

Perdemos Simon Magalhães, grande artista cujo enorme talento o Brasil não soube aproveitar e, sobretudo, valorizar. Perde o Brasil, perde Curitiba e o Paraná, que escolheu como casa e palco, perdem aqueles que não tiveram a honra de conhecer seu canto e suas composições de verdades dilacerantes e perdem, sobretudo, os que o conheceram de perto, eu aí incluído.

Tive a honra de ter me aproximado de seu trabalho durante alguma edição do Festival de Curitiba de muitos anos atrás. Fiquei tocado imediatamente com seu jeitão e seu violão. Sabia que Simon Magalhães era daqueles tipos raros de artistas verdadeiros, bem diferente dos hipócritas mercadológicos.

Simon condensava sua verdade em suas canções e performances. Fui agraciado, como jornalista cultural, de ter podido vê-lo em cena e ter escrito sobre sua sensibilidade ímpar. Em, 2015, há exatos dez anos, publiquei a seguinte manchete: Crítica: Simon Magalhães dá relevância à cena off do Festival de Curitiba com show inesquecível.

Simone Magalhães posa para o Blog do Arcanjo após show na Casa Selvática em 2015 © Foto: Emi Hoshi/Emi Photo Art para o Blog do Arcanjo 2015

Simon Magalhães tinha a uma musicalidade inata e uma antena para tudo que estava por vir. Foi precursor de muitas ideias e pautas, bem antes de terem nomes de “pautas identitárias”, que renderam muito dinheiro para muita gente, menos para Simon. Porque o Brasil não é justo. É para os mesmos de sempre, desde sempre. E profundamente ingrato com artistas de verdade, que não sabem o manejo cruel para editais e conchavos. Porque aqui, para sobreviver de arte, não basta ser artista. Antes, é preciso ser um burocrata político, coisa que Simon Magalhães nunca foi.

Simone Magalhães na peça Pinheiros e Precipícios, sob direção de Ricardo Nolasco e dramaturgia de Francisco Mallmann no Festival de Curitiba de 2016 © Humberto Araujo/Clix Blog do Arcanjo 2016

É preciso lembrar que sua música “Por Que Não Tem Paquita Preta?” foi lançada muitos anos antes do documentário “Paquitas” do Globoplay e dos questionamentos raciais que tomaram conta do país e, sobretudo da representação dos negros na mídia. Simon Magalhães sempre foi vanguarda.

O mesmo aconteceu em relação às pautas feministas e trans. Tanto que a música que Simon mais gostava era sua primeira composição. “Eu Vou Voltar a Ser Mulher”, como me contou, certa vez. 

“A primeira composição que vem do fundo do meu coração, quando comecei a fazer passeata e tive contato com ideias feministas, é o blues Eu Vou Voltar a Ser Mulher”. A canção traz os versos irônicos, que certamente fariam a alegria de Simone de Beauvoir: “Eu vou voltar a ser mulher, eu vou pregar botão, não vou mais ser sapatão, não toco mais um violão, eu vou voltar a ser mulher”.

Simon Magalhães faz participação especial na terceira sessão de Hermanas Son las Tetas, ao lado das atrizes Lauanda Varone e Liza Caetano, sob direção de Juan Manuel Tellategui, no 25º Festival de Teatro de Curitiba e cantou músicas de seu repertório © Lina Sumizono/Clix Blog do Arcanjo 2016

Jamais me esqueço dele cantando no encerramento da sessão curitibana da peça Hermanas Son las Tetas, peça dirigida por Juan Manuel Tellategui, que fez questão de convidar Simon a fazer participação especial no espetáculo durante o Festival de Curitiba de 2016. Ao ver a cena, chorei.

Simon Magalhães no show Por Que Não Tem Paquita Preta? na Casa Selvática em 2016 © Emi Hoshi/Emi PhotoArt para o Blog do Arcanjo 2015

Há cinco anos, escrevi para o Huffpost Brasil: “Simon Magalhães faz Curitiba tremer quando solta seu vozeirão. Seus pés assentados no blues são o ponto forte da balada Eu Vou Voltar a Ser Mulher, uma ironia fina altamente feminista que diz: “Eu vou voltar a ser mulher, vou pregar botão, não quero mais ser sapatão, não toco mais um violão, eu vou voltar a ser mulher”. E Simon não tem medo de também ser leve e pop, mesmo quando faz questionamentos profundos, caso da implacável canção-questionamento Por Que Não Tem Paquita Preta?, que ganhou clipe-festa com seus amigos da Selvática Ações Artísticas, um dos grupos mais desbundados do teatro brasileiro. Simon é do tipo artista de verdade, que vive a arte na vida. Um tipo que já não se fabrica mais. Então, aproveitemos, e muito.”

Que pena que o Brasil não aproveitou. Descanse em paz, Simon Magalhães. Obrigado por tanto.

Morre em curitiba o cantor Simon Magalhães © Foto: Emi Hoshi/Emi Photo Art para o Blog do Arcanjo 2015

A seguir o Blog do Arcanjo compartilha o texto publicado pelo Jornal A Cena em homenagem a Simon Magalhães, que morreu aos 58 anos em Curitiba.

Simon Magalhães e Stéf Belo em Iracema 236ml, peça da Selvática Ações Artísticas © Tamíris Spinelli Blog do Arcanjo 2015
Simon Magalhães com a turma da Selvática Ações Artísticas © Emi Hoshi/Emi Photo Art Blog do Arcanjo 2015
Simone Magalhães - Foto: Humberto Araújo/Divulgação - Blog do Arcanjo
Simone Magalhães em retrato de Humberto Araújo para o Festival de Curitiba – Arquivo Blog do Arcanjo

ESPECIAL

Adeus a Simon Magalhães, multiartista premiado e voz indispensável da cena preta paranaense, por JORNAL A CENA

Multiartista que se autodefinia “preto, periférico, latino‑americano e de voz potente”, Simon parte poucos dias depois de comemorar mais um aniversário, levando consigo décadas de criação que desafiaram padrões estéticos e raciais na arte paranaense.

Formado em Artes Cênicas, Simon ingressou nos palcos ainda na década de 1990 e rapidamente se tornou referência por reunir presença cênica vigorosa e discurso afiado. Em 2009, arrebatou o Troféu Gralha Azul de Melhor Atriz por sua atuação no espetáculo “Pixaim”, montagem que denunciava o racismo estrutural a partir da estética do cabelo crespo. No cinema, brilhou ao lado de Lázaro Ramos em “Cafundó” (2005), dirigido por Paulo Betti e Clóvis Bueno.

Em 2014, Simon ingressou no coletivo Selvática Ações Artísticas e estreou o musical autoral “Por que não tem paquita preta?”—um show‑manifesto que misturava pop, samba‑funk e poesia para questionar a ausência de meninas negras no imaginário infantil televisivo. Dois anos depois, emprestou sua inteligência cênica à peça “O Homem Desconfortável”, título que marcou a retomada do Teatro de Comédia do Paraná (TCP) em 2016.

Entre seus trabalhos mais recentes está “Adoráveis Transgressões”, montagem que revisita histórias de corpos dissidentes e reafirma a arte como espaço de transformação social.

Em 2023, a Câmara Municipal de Curitiba incluiu Simon entre as 18 personalidades homenageadas na sessão alusiva ao Mês da Consciência Negra, reconhecendo oficialmente sua contribuição à cultura afro‑paranaense.

Mais do que prêmios, Simon colecionava afeto: seu nome ecoava em saraus, blocos de carnaval, oficinas de teatro e projetos de formação de público na periferia. Era comum vê‑lo dividir o microfone com jovens artistas, incentivando-os a “fazer barulho” e ocupar todos os espaços.

Legado de SIMON MAGALHÃES em cinco atos

Representatividade negra – Colocou corpos, vozes e narrativas pretas no centro do palco, confrontando estereótipos.

Arte híbrida – Transitava com naturalidade entre a música, o teatro físico, a performance e a poesia falada.

Formação de público – Com sua arte, ajudou a formar públicos diversos e aproximar temas de representatividade de comunidades historicamente marginalizadas.

Premiação histórica – Primeiro artista negro a conquistar o Gralha Azul na categoria Melhor Atriz pelo espetáculo “Pixaim”.

Inspiração para novas gerações – Seu espetáculo “Por que não tem paquita preta?” virou referência para pessoas que discutem representatividade negra nos espaços.

“Que Simon Magalhães leve consigo os aplausos de todos os palcos por onde passou.”

O Jornal A Cena  presta homenagem e se une ao coro de vozes que celebram a vida de uma artista que transformou cada palco em arena de potência. Que a reverberação de sua arte continue abrindo caminhos para novas paquitas pretas, novas histórias e novos espetáculos que insistam em fazer do mundo um lugar mais plural.

Editado por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige Blog do Arcanjo e Prêmio Arcanjo. Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Cultura pela USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, Folha, Ed. Abril, Huffpost, Band, Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra os júris: Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio do Humor, Prêmio Governador do Estado, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio DID, Prêmio Canal Brasil. Venceu Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio ANCEC, Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado.
Foto: Rafa Marques
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