Ópera Matraga evoca universalidade do sertão de Guimarães Rosa no Palácio das Artes em Minas Gerais

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
O universo mítico e visceral do sertão mineiro de João Guimarães Rosa volta a ganhar vida nos palcos, desta vez sob a forma de uma ópera singular: “Matraga”, de Rufo Herrera. Em curta temporada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, entre os dias 17 e 20 de maio, o espetáculo convida o público a mergulhar nas profundezas da alma humana, onde a aridez da paisagem se espelha nas complexidades morais de seus personagens.
Nesta nova oportunidade de assistir “Matraga”, o público poderá conferir o encontro da direção musical de Ligia Amadio, que dividirá a regência com o maestro assistente André Brant, com a visão cênica de Rita Clemente, que concebeu um espetáculo onde a teatralidade e a musicalidade se imbricam de forma orgânica. A equipe criativa, que conta com nomes como Miriam Menezes na cenografia, Sayonara Lopes nos figurinos e Gabriel Pederneiras na iluminação, promete um ambiente visual e atmosférico que dialoga com a força da narrativa.

Em três atos, a ópera concebida por Rufo Herrera não apenas adapta o conto, mas o expande através da linguagem musical e cênica. A presença marcante dos corpos artísticos da Fundação – a Orquestra Sinfônica, o Coral Lírico e a Cia de Dança – garante uma imersão sensorial completa. A narração do ator Gilson de Barros, voz já familiar aos admiradores da obra rosiana, guiará o público pelos meandros dessa jornada épica, que tem o ator Leonardo Fernandes como Augusto Matraga. A produção já colheu frutos em 2023, com uma pré-estreia emocionante na Gruta do Maquiné, berço do escritor, e um sucesso de público e crítica em Belo Horizonte.
A ousadia da Fundação Clóvis Salgado em transpor para o palco do Grande Teatro Cemig Palácio das Artes essa saga literária é louvável. “Matraga” ecoa a comparação certeira que elege Guimarães Rosa como um “Dostoiévski do Sertão”, explorando as dicotomias existenciais que permeiam a condição humana: vida e redenção, crime e castigo, o bem e o mal, a inexorável passagem do tempo e a busca pela salvação.
“Matraga” é mais do que uma adaptação; é uma reinterpretação que celebra a mineiridade e a universalidade da obra de Guimarães Rosa. A escolha deste conto, onde o regional encontra o transcendental, ressalta a atemporalidade das questões humanas ali exploradas. A ópera convida a uma reflexão sobre a violência, a fé e a possibilidade de redenção em um sertão que pulsa com a intensidade das paixões e dos dilemas morais. Prepare-se para ser transportado a um universo onde “os fracos não têm vez e mesmo os fortes têm hora e vez”.
O Blog do Arcanjo mostra a seguir entrevistas exclusivas com o presidente da Fundação Clóvis Salgado, Sergio Rodrigo Reis, e com o ator Leonardo Fernandes, intérprete de Matraga.

Entrevista com Sergio Rodrigo Reis, presidente da Fundação Clóvis Salgado
Miguel Arcanjo Prado – Qual a importância da Fundação Clóvis Salgado na produção operística em Minas Gerais e no cenário nacional?
Sergio Rodrigo Reis – Desde a sua inauguração, em 1971, a Fundação Clóvis Salgado já produziu inúmeras óperas — até hoje, foram 97 produções. A FCS conta, em seus quadros internos e externos, com todos os profissionais e ateliês necessários à produção operística, como poucas instituições brasileiras. Toda essa força criativa se transforma em arte, em sua máxima potência, quando todos esses profissionais se unem para montar grandes produções. Trata-se de algo raro no cenário nacional, o que comprova a importância da instituição para a manutenção desse gênero artístico, tanto em Minas Gerais quanto no restante do país. Até hoje, a Fundação Clóvis Salgado é a única grande instituição produtora de óperas em Minas Gerais. O Palácio das Artes foi concebido pelo arquiteto Oscar Niemeyer com esse propósito, com dimensões específicas de palco, coxias, fosso de orquestra, condições técnicas e um Centro Técnico de Produção e Formação, onde são construídos e armazenados os cenários e figurinos das óperas apresentadas. Minas Gerais, sem dúvida, faz parte do circuito operístico brasileiro, ao lado de São Paulo, Rio de Janeiro e Manaus — perdendo apenas no número de produções anuais, já que o Grande Teatro também recebe shows, espetáculos de dança, concertos e peças teatrais.
Miguel Arcanjo Prado – A mineiridade tem peso na escolha das temáticas das óperas originais a serem produzidas?
Sergio Rodrigo Reis – Com certeza. Desde Aleijadinho, ópera de Ernani Aguiar e André Cardoso, todos os títulos são pensados a partir do nosso estado. Em alguns momentos, as Minas — com Aleijadinho e Devoção — e, em outros, as Gerais — com Matraga e Chica da Silva, título já encomendado e que será estreado em 2026.
Matraga é um espetáculo ousado, contemporâneo, com características operísticas e sob inspiração de uma dramaturgia tipicamente mineira. Escolhemos o que em Minas é mais universal: a genialidade de João Guimarães Rosa.”
Sergio Rodrigo Reis
presidente da Fundação Clóvis Salgado
Miguel Arcanjo Prado – Como se deu a produção de Matraga e o que ela tem de especial?
Sergio Rodrigo Reis – Rufo Herrera escreveu A Balada para Matraga em 1985, por encomenda da Fundação Clóvis Salgado. Foi um espetáculo cênico-musical que, em 2023, transformamos em ópera. Tendo como base a partitura criada em 1985, ampliamos o conjunto orquestral e utilizamos todos os recursos disponíveis para dar vida ao conto de João Guimarães Rosa. Com a supervisão de Rufo, a atriz e dramaturga Rita Clemente dirigiu a ópera, que não apresenta grandes variações em relação à ópera tradicional. Os recitativos — muito usados nas óperas de Mozart, por exemplo — aparecem em Matraga como diálogos entre os personagens, e o enredo vai sendo desenvolvido por meio de árias, coreografias e textos.
Miguel Arcanjo Prado – Quais outras óperas serão produzidas neste ano pela FCS?
Sergio Rodrigo Reis – Fizemos uma parceria com a Associação Brasileira de Cantores Líricos, dirigida pelo gestor Fernando Bicudo, e apresentaremos a ópera Tosca, de Puccini, em agosto, com elenco internacional que nunca se apresentou no Palácio das Artes. Por exemplo, a grande soprano Saioa Hernández — que Montserrat Caballé elegeu como “a diva deste século” — e o tenor brasileiro Atalla Ayan.

Entrevista com o ator Leonardo Fernandes, protagonista da ópera Matraga
Miguel Arcanjo Prado – Como é o desafio de viver um personagem tão icônico da mineiridade em uma ópera original?
Leonardo Fernandes – Interpretar o Matraga, um personagem tão icônico criado por Guimarães Rosa, é um desafio enorme e, ao mesmo tempo, um privilégio. O Matraga é um dos grandes personagens do autor, denso, contraditório, profundamente humano, complexo. Como ator, e não cantor, mergulhar nesse universo operístico, que tradicionalmente se ancora na música e na voz cantada, exige um tipo de presença cênica e entrega muito específicos. Ampliar minha percepção para a música e para a dança enquanto navego pelas transformações de Matraga é um desafio constante. É um personagem que está em conflito o tempo inteiro, oscilando entre a brutalidade e a fé, entre o destino imposto e a escolha pessoal. Minha missão é trazer à cena essa tensão viva, essa busca por redenção, com toda a força simbólica que a linguagem da ópera pode potencializar. É uma das raras óperas em que o protagonista é um ator/não cantor. Em que é mais necessário em termos técnicos ter um ator do que um cantor no papel. Por essa raridade, penso que, pode ser a primeira e última vez que faço uma ópera. Infelizmente.
Miguel Arcanjo Prado – Como enxerga a importância de Minas Gerais no contexto operístico nacional e internacional?
Leonardo Fernandes – Minas Gerais tem um papel super importante no cenário da ópera no Brasil. Fora de São Paulo, é um dos poucos estados que consegue manter uma programação regular de ópera há anos. O Palácio das Artes costuma montar pelo menos duas grandes produções por ano, o que movimenta o mercado cultural, gera trabalho para artistas locais e ainda traz gente de fora, criando um intercâmbio muito rico. Isso faz com que Minas não só continue firme na cena nacional, mas também ganhe destaque internacional como um dos polos que realmente investem em ópera no país.
“Matraga”
da obra de João Guimarães Rosa
Ficha Técnica
Direção Musical: Ligia Amadio Regência: Ligia Amadio e André Brant Concepção e Direção Cênica: Rita Clemente Assistência de Direção: Ronaldo Zero Cenografia: Miriam Menezes Figurinos: Sayonara Lopes Iluminação: Gabriel Pederneiras Direção Coreográfica: Alex Soares Preparação do Coral Lírico: Augusto Pimenta e André Brant Direção-Geral: Cláudia Malta Corpos Artísticos: Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, Coral Lírico de Minas Gerais, Cia de Dança Palácio das Artes
Elenco: Leonardo Fernandes, Gilson de Barros, Edineia Oliveira, Edna d’ Oliveira, Geilson Santos, Flávio Leite, Leandro Abreu, Guilherme Théo, Ivan Sodré, Luciano Luppi, Chico Lobo, Eliatrice Gischewski, Maíra Campos, Isadora Brandão
Serviço
“Matraga”, da obra de João Guimarães Rosa | Ópera em três atos, de Rufo Herrera
Datas e horários: 17/5 (sábado), às 19h; 18/5 (domingo), às 18h; 19/5 (segunda-feira) e 20/5 (terça-feira), às 20h Local: Grande Teatro Cemig Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1537, Centro, Belo Horizonte) Ingressos: R$60,00 (inteira) e R$30,00 (meia-entrada) Classificação Indicativa: 10 anos Informações para o público: (31) 3236-7400
Editado por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige o Blog do Arcanjo desde 2012 e o Prêmio Arcanjo desde 2019. É Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Mídia e Cultura pela ECA-USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Eleito três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por TV Globo, Grupo Record, Grupo Folha, Editora Abril, Huffpost Brasil, Grupo Bandeirantes, TV Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Foi coordenador da SP Escola de Teatro. Integra o júri do Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio Governador do Estado de SP, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Destaque Imprensa Digital, Prêmio Guia da Folha e Prêmio Canal Brasil. Vencedor do Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio Destaque em Comunicação ANCEC, Troféu Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade Prêmio Governador do Estado, maior honraria na área de Letras de São Paulo.
Foto: Edson Lopes Jr.
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