Privilegiada, Miúcha conviveu com a MPB em casa e cantou a emoção

Ícone da MPB: a cantora Miúcha, em foto de 1989 – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Miúcha, cantora que morreu nesta quinta (27), aos 81 anos, vítima do câncer, foi uma grande facilitadora da música brasileira, rodeada de amigos talentosos. Com os gênios da pátria musical à sua volta — era irmã de Chico Buarque, ex-mulher de João Gilberto, mãe de Bebel Gilberto e, por consequência, espécie de madrinha de Cazuza, além de ter sido amiga íntima de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, com os quais realizou turnês — ela conhecia os meandros de nossa cultura de dentro.

“A minha história está ligada e interliga histórias de muitos amigos de trabalho. É bom sentir e saber que fiz isso, e vou continuar fazendo”, disse ela a este colunista em 2016, na ocasião de celebração de seus 40 anos de carreira. E, de dentro de sua alma, cantava. “Canto com a emoção”, definiu Heloísa Maria Buarque de Holanda, seu nome de batismo.

Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Miúcha e Toquinho nos anos 1970 – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Foi Miúcha, por exemplo, quem apresentou João Donato a Caetano Veloso e Gilberto Gil, este último com quem o acreano compôs o clássico “Lugar Comum” — a dupla voltou à ativa recentemente de forma potente com “Uma Coisa Bonitinha”, presente no último disco de Gil, “Ok Ok Ok”. Miúcha tinha faro para gente e para reunir seus talentos.

Instigada por este colunista, a cantora contava que o momento mais complicado nas mais de quatro décadas de carreira como cantora profissional foi justamente quando a veia artística surgiu, exuberante: em 1976 gravou no disco “The Best of Two Worlds: João Gilberto – Stan Getz”, um clássico mundial. “Foram frenéticos momentos de idas e vindas entre Brasil e Estados Unidos, em 1975, um ano antes, cuidando da organização e do processo criativo de João com Getz… E com Bebel ainda criança e junto comigo”, lembrou na última entrevista concedida ao Blog do Arcanjo no UOL, em 2016.

Miúcha e João Gilberto em Nova York nos anos 1970 – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

“Neste período ficamos em Shadowbrook, em Nova York, na casa do próprio Getz. Foi tudo muito bonito, por isso ao invés de ‘difícil’ eu prefira ‘mais trabalhoso’ [período da carreira]. E ao mesmo tempo, eu gravei e lancei, pela Philips, um compacto com canções inéditas de João Donato com Caetano e Gil (pois eu já era amiga do Donato e os apresentei, e então vieram canções lindas, inclusive continuaram compondo juntos), e uma canção de Péricles Cavalcanti, que estava começando, e que Bebel cantou comigo, pela primeira vez, aos nove anos (‘O que quer dizer?’); e claro, não podia faltar o Tom, e gravei ‘Correnteza’, dele com o Bonfá, novíssima naquela ocasião”, contou, com sua memória enciclopédica puxada do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Dona de passado glorioso, Miúcha jamais parou no tempo. Gostava das modernidades que proporcionavam o contato com os fãs na página do Facebook e também em seu canal no YouTube, além de usar o celular para se comunicar com a filha Bebel, moradora de Nova York. “Cada amigo é uma saudade, mas saudade que a gente comemora lembrando, cantando, é isso!”, ensinou-nos. Antenada, acompanhava o surgimento da nova música brasileira. “De cantoras, os trabalhos de Karina Bühr e Alessandra Leão realmente me encantaram”, revelou.

Miúcha ao lado do então marido, João Gilberto, e do irmão, Chico Buarque – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Sobre seus codinomes na imprensa, “irmã do Chico”, “ex-mulher do João Gilberto” ou “mãe de Bebel”, ela definiu a este colunista. “É a minha família! Sem esquecer que sou filha de Sergio Buarque e Maria Amélia, e irmã de Sergito, Álvaro, Maria do Carmo (Piii), Ana (Baía) e Cristina. Os sobrinhos, então, são incríveis! Isso é normal no Brasil. Ainda mais hoje, porque é mais fácil até para fazer um título de matéria: “Irmã de Chico Buarque grava um disco tal…”, e até porque Chico Buarque é um dos compositores que mais gravei! Não vejo como rótulo ou codinome, mas sim nomes e sobrenomes que me dão alegria. É sempre bom a gente lembrar da família!”.

Bebel Gilberto, João Gilberto e Miúcha, mais recentemente – Foto: Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Uma coisa foi impactante para Miúcha: ouvir Billie Holiday, apresentada a ela por Zé Celso em Nova York. A partir da cantora norte-americana conheceu o trabalho do pianista lendário do jazz Albert Dailey, com quem gravou e que lhe ensinou algo que seguiu à risca até o fim. “Eu me lembro sempre de ouvi-lo dizer ‘cantar blues nada mais é que cantar a emoção’. ‘Cantar emoções’ em todas as línguas, ou numa linguagem que é universal e é a própria músicav sempre foi um valor que aprendi nesse primeiro momento artístico. Então, não penso em outros ‘valores’ que possam ser atribuídos aqui ou ali a delicadezas como a nossa música: seja onde for, ela sempre será as emoções brasileiras tocando no mundo inteiro, de preferência!”. A emoção presente na voz de Miúcha jamais deixará de soar.

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