Atrizes trans celebram decisão da Justiça contra censura à peça sobre Jesus

Renata Carvalho na peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” – Foto: Ligia Jardim/Divulgação

Por Miguel Arcanjo Prado

A atriz travesti Renata Carvalho comemora a decisão do juiz José Antonio Coitinho, de Porto Alegre, que negou o pedido de censura da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, da qual é protagonista no papel de Jesus, em uma mensagem de amor ao próximo inspirada nas palavras de Cristo, a partir do texto da dramaturga escocesa transexual Jo Clifford sob direção e adaptação de Natalia Mallo.

O espetáculo foi censurado na última sexta (17) em Jundiaí por uma decisão de um juiz da cidade, no interior paulista. A peça ressalta as palavras de Cristo nos Evangelhos, colocando em cena no papel de Jesus um corpo perseguido socialmente, como é o da travesti. O objetivo é deixar evidente a mensagem de amor ao próximo passada por Jesus.

“A gente recebeu com muita tristeza esse processo tentando censurar a peça. Mais uma pessoa tentando calar a arte, o teatro, a liberdade de expressão artística, tentando censurar e calar a peça. Isso é muito feio, é um retrocesso muito grande. Censurar a arte é censurar o pensamento crítico, isso é muito grave”, fala Renata Carvalho em conversa exclusiva com o Blog do Arcanjo do UOL.

“Mas que bom que existem juízes como José Antonio Coitinho, que tem esse entendimento e colocou com clareza sua sentença”, complementa.

“Estamos indo com muito amor para Porto Alegre, as pessoas vão nos receber com muito carinho, o movimento LGBT está me esperando lá, já nos propôs uma mesa. O espetáculo está seguindo carreira. De 5 a 8 de outubro vamos para BH, depois vamos para o Festival Internacional de Artes Cênicas em Salvador e recebemos um convite para ir para Cabo Verde, na África”, revela.

Em entrevista exclusiva ao Blog do Arcanjo do UOL, a dramaturga escocesa Jo Clifford, celebra a decisão judical contra a censura de sua peça no Brasil.

“Estou profundamente emocionada com a decisão do juiz José Antonio Coitinho. É raro encontrar um juiz que possa expressar-se com tanta clareza e paixão e que entenda plenamente a importância dos direitos do indivíduo para se expressar de acordo com sua identidade e dos direitos da liberdade de expressão do artista. Estou imensamente agradecida a ele”, declara a escocesa.

“Eu, juntamente com os meus colegas da peça ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’, somos absolutamente solidários com a nossa corajosa peça-irmã no Brasil. E eu repetiria que minha intenção nunca foi insultar ou atacar a igreja cristã. Venero profundamente a figura histórica de Jesus, e minha peça é a expressão da minha devoção”, afirma Jo Clifford.

A dramaturga e atriz transexual escocesa Jo Clifford durante encenação de sua peça em 2016 no FIT-BH – Foto: Guto Muniz/Divulgação

Furaram pneus do carro da diretora

Renata Carvalho afirma que não vai esmorecer diante do ódio que muitas pessoas têm demonstrado contra ela e o espetáculo. “Apesar de terem furado os quatro pneus do carro da Natalia Mallo [diretora da peça] nesta segunda [19], não vamos nos calar. Juntas somos mais fortes. Censura nunca mais”, declara.

E lembra que o apoio que recebeu de pessoas em todo o Brasil tem disso importante. “Precisamos lutar e quero agradecer a todos que têm apoiado, continuem curtindo nossa página ‘O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu’, no Facebook e no Instagram, continuem compartilhando nossas postagens, porque isso fortalece. Queria agradecer as inúmeras mensagens de carinho. E também vamos tomar providências judiciais em relação a ataques, porque as pessoas precisam saber que a internet não é terra de ninguém e que opinião é diferente de opressão e preconceito”, avisa.

Renata Carvalho em “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” – Foto: Bob Sousa

A atriz, que prefere ser chamada de travesti para ajudar a tirar o estigma que a palavra carrega, vê um lado positivo em toda essa polêmica em torno do espetáculo, que foi censurado na última sexta (15) no Sesc Jundiaí por um juiz da cidade. “Isso foi bom porque jogou uma luz no tema da transfobia, é só entrar na minha página no Facebook pra ver o ódio que as pessoas têm de um corpo trans”, fala.

“Somos uma sociedade corporificada, em que alguns corpos são aceitos e outros não. E os corpos trans estão nesse grupo de corpos não aceitos, abjetos, excluídos, marginalizados, sexualizados. Precisamos normalizar e humanizar nossos corpos trans. E isso só vamos conseguir através da representatividade, de estarmos presentes, de conviver realmente na sociedade, de sair na rua e ver travesti e transexual na farmácia, no shopping, no açougue como açougueira ou onde ela quiser estar”, diz Renata Carvalho.

“Essa curiosidade de as pessoas ficarem nos olhando, em cima do corpo trans, e o ódio que têm, é porque não estamos presentes. Criamos um Manifesto Representatividade Trans, que está no Facebook, peço que todos leiam e compartilhem”, pede.

Atrizes trans comemoram decisão judicial

A decisão do juiz de Porto Alegre recusando censurar a peça repercutiu de forma positiva na classe teatral. Maite Schneider, atriz transexual paranaense radicada em São Paulo, afirma que está contente desde que soube da sentença contra a censura.

“Estou muito feliz com a decisão do juiz José Antonio Coitinho, que mostra que o Direito e a Justiça devem sempre estar antenados com seu tempo, com as convicções da liberdade e da democracia. Ele afirma o que eu sempre acreditei, que todas as pessoas são iguais e a arte é para todos”, diz Maite.

Ela complementa: “A arte faz as pessoas saírem do lugar comum, pensarem e refletirem sobre outras possibilidades além daquelas apresentadas em nosso cotidiano. A arte é para nos fazer sentirmos livres, vivos e humanos”.

A atriz Maitê Schneider: “Fico emocionada ao falar disso em uma época em que a censura está gritando” – Foto: Edson Lopes Jr./Divulgação

E faz questão de parabenizar à colega, pela coragem de levar o espetáculo à frente, e ao juiz gaúcho. “Parabéns à Renata Carvalho, minha amiga, e ao juiz José Antonio Coitinho. Fico emocionada ao falar disso numa época em que a censura está gritando. A censura esteve velada desde o fim da ditadura e agora está dando as caras. A gente não pode deixar isso acontecer, principalmente nós artistas, que acreditamos que a arte é o caminho para a mudança deste mundo”, conclui Maite Schneider.

A atriz transl Leona Jhovs: “Nosso país vem reforçando a transfobia” – Foto: Dario José/Divulgação

Leona Jhovs, atriz trans travesti paulistana, também se emociona ao falar do assunto. “A censura que ocorreu sobre o espetáculo da minha incrível mana e atriz travesti Renata Carvalho foi de arrepiar. Eu também sendo uma artista trans travesti senti na pele naquele momento mais um impacto de como nosso país vem reforçando a transfobia”, diz.

“Mais forte ainda foi ver os apoios a esse tipo de atitude tomada por aqueles que deveriam se mostrar a favor da liberdade. Mas com essa nova medida que o juiz José Antonio Coitinho toma em autorizar essa obra tão necessária nesse nosso tempo, me faz pensar que estamos no caminho certo”.

Leona está em cartaz até 1º de outubro na peça “Curare”, em cartaz com o grupo Pessoal do Faroeste em sua sede, Luz do Faroeste, em São Paulo. “O país que mais mata transexuais e travestis no mundo tem nesse e em outros trabalhos que circulam hoje, como em ‘Curare’, o prazer e a desconstrução de ver mulheres como nós fugindo das estimativas de exclusão da sociedade e sim ocupando nossos lugares de direito que até então haviam nos negado. Ainda há muita luta pela frente. Tirem-nos das esquinas. Resistiremos e Lutaremos. Juntas somos mais fortes”, avisa.

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