Opinião: Há 40 anos, Gilberto Gil despertou consciência negra com Refavela

Capa e contracapa do disco “Refavela”, lançado por Gilberto Gil em 1977: valorização da ancestralidade africana – Foto: Reprodução

Por Miguel Arcanjo Prado

“Refavela”, álbum lançado por Gilberto Gil em 1977 e que celebra 40 anos com uma série de shows idealizados por seu filho Bem Gil, foi um disco fundamental na sedimentação da consciência negra no Brasil. E, sobretudo, em minha formação.

Vovó Oneida Oliveira, a ialorixá Mãe Gigi, era admiradora e amiga de Gil, que foi padrinho do Afoxé Ilê Odara, o primeiro de Belo Horizonte, que ela fundou em 1982. Vovó acompanhava Gil em tudo. E o disco inspirado na viagem de seu “Neguinho”, como ela o chamava, à Nigéria, era o seu preferido.

No final dos anos 1970 e começo da década de 1980, vovó foi nome fundamental do Movimento Negro Unificado, o MNU, em Belo Horizonte. E aquele disco de Gil era a legitimação de tudo aquilo em que ela acreditava fartamente: uma religação com a África era necessária aos negros brasileiros, frutos da diáspora imposta e perversa a bordo dos navios negreiros.

De pequeno, aprendi a escutar “Refavela” em vinil, na radiola. Faixa a faixa, numa espécie de transe familiar. Vovó gostava de ouvir “Refavela” bem alto, em uma onda de catarse ancestral. Dançava cada música, e tinha certa predileção por “Ilê Ayê”, composição de Paulinho Camafeu em louvação ao lendário bloco exclusivamente afro soteropolitano, um hino necessário de afirmação e orgulho da negritude, que ela me ensinou a cantar.

“Refavela” me acompanhou durante toda a vida. Quando o vinil cedeu espaço ao CD, lembro-me que, adolescente, fui a uma loja comprá-lo no novo formato. Afinal, ouvir “Refavela” já era uma espécie de tradição familiar, um jeito de ficar próximo novamente de vovó, que tão cedo nos deixou, em 1988.

As músicas de “Refavela” são pura identidade, como a canção que abre o álbum, indo ao encontro da periferia, “que se arranca do seu barraco prum bloco do BNH”. “Aqui e Agora” foi a primeira transcendência de tempo/espaço que descobri na vida. O xote “Norte da Saudade” traz aquele Gil nostálgico de seu Nordeste infantil, de um São João de Luiz Gonzaga redescoberto por ele no disco “São João Vivo”, de 2001.

“Babá Alapalá” reúne os orixás em festa ancestral, assim como “Patuscada de Gandhi”, um ijexá hipnotizante em celebração ao tradicional bloco negro, tapete branco do Carnaval baiano.

A prisão de Gil na ditadura militar e sua internação no hospício pelos milicos vira a nostálgica “Sandra”, na qual o compositor consegue enxergar poesia e beleza no horror cometido contra ele, falando das enfermeiras, com sua presença feminina que o remete à então mulher. “Era Nova” é o recado de Gil para que a utopia por um mundo melhor e mais justo esteja presente no cotidiano do agora.

E, ao olhar para a África em “Refavela”, Gil não deixa de conversar também com o Brasil, em uma versão malemolente de “Samba do Avião”, de Tom Jobim. Ainda há espaço para a presença hipnotizante do instrumento percussivo do norte africano na canção-tributo “Balafon”.

“Refavela” é a ancestralidade africana reafirmada com o melhor de Gilberto Gil. Os 40 anos do álbum merecem toda essa festa farta comemoração que já começou no Rio e agora aporta em São Paulo.

Quem quiser ouvir as canções do disco ao vivo com Gilberto Gil e participações mais do que especiais de Céu, Moreno Veloso e Maíra Freitas é só ir ao Sesc Itaquera, em São Paulo, neste domingo (10), onde o show gratuito começa às 16h. Se vovó estivesse por aqui, não perderia por nada. E dançaria comigo faixa a faixa deste disco referência da consciência negra brasileira, que ela e Gil me ensinaram a ter.

Refavela40
Domingo (10), 16h, no Sesc Itaquera (av. Fernando do Espírito Santo Alves de Mattos, 1000, Itaquera, São Paulo). Grátis. Livre.

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