Entrevista de Quinta: “Classe teatral branca exclusora deve se sentir incomodada”, diz Jé Oliveira, do Coletivo Negro

O ator e diretor Jé Oliveira, do Coletivo Negro - Foto: Jorge Martins/Divulgação

O ator e diretor Jé Oliveira, do Coletivo Negro – Foto: Jorge Martins/Divulgação

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Jé Oliveira é ator e diretor do Coletivo Negro, grupo teatral formado por artistas negros em São Paulo há oito anos. Ele estreou na última terça (15), no Sesc Pompeia, a nova peça do grupo, Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens.

A obra tem participação do DJ Kl Jay, dos Racionais MC’s, e fica em cartaz até 6 de abril, sempre às terças e quartas, às 21h. Em foco, a experiência do homem negro na periferia paulistana.

Artista formado pelo Senac e pela Escola Livre de Teatro de Santo André e graduando em Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo), ele conversou com o site nesta Entrevista de Quinta, na qual falou sobre a peça, o grupo, o racismo e o teatro no qual acredita.

Leia com toda a calma do mundo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acha que o Coletivo Negro sofre algum tipo de preconceito na própria classe artística?
JÉ OLIVEIRA — Sim, sem dúvida. Infelizmente existem pessoas que não vão nos assistir por achar que não terá teatro ou pesquisa estética, apenas causas sociais. O que é um preconceito e também limitador: a pessoa não se permite viver a experiência, ser surpreendido ou até mesmo descordar… Digo isso até com bastante dor, até colegas nossos que são da mesma geração, que estudamos juntos na mesma escola não conhecem nada do trabalho que realizamos nesses últimos oito anos. A classe teatral, de um modo geral, na cidade de São Paulo, por ser branca e de classe média, não se interessa por pensar nas questões raciais, então taxam o grupo de exclusor ou coisa do tipo. Como se nós estivéssemos no status quo, com poder de decisão de algo e daí advir o ato de excluir alguém. Isso é um engano e um entendimento burro de uma necessidade de se discursar em primeira pessoa, com urgência e necessidade, já que ninguém nunca estranhou os 97% de grupo de teatro da cidade que só possuem brancos em suas formações decisórias…

Jé Oliveira, ao centro, com a banda da peça Farinha com Açúcar: Cássio Martins (baixo), Kl Jay – Racionais Mc’s - Participação Especial e Djy Wojtila (DJ´s), Fernando Alabê (Percussão e Bateria) Mauá Martins (Pianos e MPC), Melvin Santhana (Guitarras, Violão e Voz) - Foto: André Murrer/Divulgação

Jé Oliveira, ao centro, com a banda da peça Farinha com Açúcar: Cássio Martins (baixo), Kl Jay – Racionais Mc’s – Participação Especial e Djy Wojtila (DJ´s), Fernando Alabê (Percussão e Bateria) Mauá Martins (Pianos e MPC), Melvin Santhana (Guitarras, Violão e Voz) – Foto: André Murrer/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que vocês criaram o Coletivo Negro?
JÉ OLIVEIRA — Porque não nos sentíamos representados em quanto negros pelos trabalhos que víamos e que por vezes até fazíamos em outros coletivos. Não nos víamos como personagens complexos, não nos vimos no público. Entendemos que nosso empenho de vida, enquanto negros e negras, precisa ser refletido, problematizado, dialetizado, celebrado em cena e por meio da cena. É uma necessidade vital de refletir sobre o país e sobre quem somos nesses tempos em que vivemos. Somos fator essencial e primordial do “esforço civilizatório” que as artes empenham nesse país e não podemos, em hipótese alguma, estar fora de qualquer meio de representação, e o teatro nos diz respeito nesse sentido.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como surgiu a ideia de Farinha com Açúcar?
JÉ OLIVEIRA — Após as nossas últimas pesquisas, sobretudo no que se refere a parte sobre a relação familiar e os impactos íntimos do racismo, conteúdo da nossa peça {ENTRE} – 2014, comecei a pensar em como uma pessoa se torna politicamente negra, apresentei essa questão a mim mesmo e percorri caminhos doloridos na busca de respostas. Comecei a ler algumas sobre formação de identidade e sobre a construção psicológica de construções identitárias afro-centradas. Em decorrência dessa investigação primeiramente íntima e intelectual comecei a expandir o alcance da minha indagação e a pensar como teria se dado essa construção para mais pessoas. Em conversa com a Lívia Roxa, ela me sugeriu entrevistar homens negros e foi isso que fiz para tentar entender as trajetórias de construção de identidade contidas em cada um dos entrevistados, foram 12. Em paralelo prossegui e prossigo com os estudos teóricos que me auxiliam na análise dos dados quantitativos que colhi.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Qual foi o momento mais difícil no processo de pesquisa da peça?
JÉ OLIVEIRA — Conseguir que as pessoas falassem sobre isso. Tiveram pessoas que desmarcaram comigo muitas vezes. Tive também que trocar de pessoa por que não conseguia mais encontrar o entrevistado. A busca da síntese dessas trajetórias foi algo difícil de lidar e traduzir isso para a cena. A relação com a morte, por exemplo, que é uma unidade verificável no material recolhido e analisado (tanto a morte de amigos assassinados pela polícia, tanto como a de parentes por descaso do nosso sistema público de saúde) é algo que perpassa quase todos os entrevistados, foi bem difícil lidar com isso e fazer vida disso, arte. Respirar mesmo sob os escombros…

Farinha com Açúcar está em cartaz no Sesc Pompeia - Foto: André Murrer/Divulgação

Farinha com Açúcar está em cartaz no Sesc Pompeia – Foto: André Murrer/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — A música tem papel importante neste espetáculo? Por quê isso foi escolhido?
JÉ OLIVEIRA — A música é outra unidade determinante na para a formação das identidades desses negros: ela é a vida que brota dos poros e que transcendi o extermínio que sofremos a anos…. Por isso a peça possui uma banda em cena e um DJ. O espetáculo é também tributário à obra dos Racionais Mc’s, porque para oito dos 12 entrevistados, o Racionais foi o principal despertador-convocador de uma consciência racial e social… E isso vale, no meu ponto de vista de pesquisador, para pelo menos umas duas gerações: a minha e a seguinte. Daí a importância e a celebração que é nesse momento histórico termos o Kl Jay – DJ dos Racionais Mc’s em cena conosco. Ocorre aqui um aprofundamento de uma união ética e estética verdadeira. Sendo gerida e expressada por pessoas que vivem o que falam de forma vertical, não são pessoas que aprenderam somete pelos livros ou que não viveram nada do que pregam ou falam, são pessoas faveladas mesmo, que vieram da favela como eu e que agora se representam em primeira pessoa por meio dessas duas linguagens: o teatro e o Rap. Isso nunca aconteceu no teatro, ao menos que eu tenha notícias, no meu ponto de vista.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como é sua relação com os músicos que participam da peça?
JÉ OLIVEIRA — Os músicos e as música cumprem várias funções na obra: ora é narrativa, ora é comentário, reflexão, consolo, debate, ambiência. Enfim, são muitas as camadas em que as músicas flanam e, sobretudo, elas dão sustentação para a palavra falada e/ou cantada pousar.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que este espetáculo só tem homens em cena?
JÉ OLIVEIRA — Porque é uma investigação sobre a construção de masculinidade negra periférica, coisa importante e pouco refletida. Quem são esses homens? O que vivenciam? O que sentem? Quais simbologias que compõe esse universo preto da periferia? Essa minha investigação existe em paralelo à pesquisa coordenada pela Aysha Nascimento, que é sobre o feminino negro. Lá terá apenas mulheres negras em cena.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acredita que hoje é mais consciente sobre os temas da negritude do que antes de participar do Coletivo Negro? Por quê?
JÉ OLIVEIRA — Sim, sem dúvida. Porque me debruço sistematicamente sobre essas questões. Também por ser um futuro sociólogo. Os conteúdos ao longo do tempo e da investigação vão ficando mais profundos e embasados. O caminho do conhecimento é árduo, todo e qualquer, é claro que tem momentos de prazer, mas você se defronta o tempo todo com suas fragilidades, não podemos fraquejar, ainda mais a gente que veio da periferia, de escolas públicas, o tipo de pensamento da academia é um pensamento muito distante do nosso.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acha que o Coletivo gera incômodo em algumas pessoas? Por quê?
JÉ OLIVEIRA — Eu espero que sim. Uma vez o Kl Jay – DJ dos Racionais Mc’s, falou para gente: “A gente precisa ser perigoso. Os caras precisam ter medo de nós”. Parafraseando ele, eu quero que nossa arte seja perigosa para os racistas, para os que querem que morramos antes dos 21 anos. Sim, eu espero que incomode muita gente. A classe teatral branca exclusora deve se sentir incomodada também. E ainda é pouco… E os que estão perdendo privilégios de enunciadores exclusivos das questões raciais também devem se incomodar. Não temos o rabo preso e nem medo de represálias, a legitimidade é algo facilmente identificável e não serão melindres mimados que nos deixarão com medo.

Cena da peça Farinha com Açúcar, do Coletivo Negro - Foto: André Murrer/Divulgação

Cena da peça Farinha com Açúcar, do Coletivo Negro – Foto: André Murrer/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você escreveu um artigo polêmico sobre a participação negra na MITsp. Por que tomou esta decisão?
JÉ OLIVEIRA — Penso que a palavra não é polêmica. Escrevi uma reflexão com base em uma declaração pública publicada em um veículo de comunicação. De fato, as aspas que li nessa matéria: “a CURADORIA ESCOLHEU não calar essas vozes dos atores que fariam o ‘Exhibit B’”, me descortinaram um sistema de pensamento branco, viciado e privilegiado. Continuo pensando sobre tudo e irei aprofundar a reflexão que me parece bastante pertinente.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você acredita que um dia haverá igualdade entre negros e brancos na carreira artística? Por quê?
JÉ OLIVEIRA — Sim. Talvez na geração dos meus netos, seu eu vier a tê-los, um pouco mais de igualdade seja possível. Mas ainda levará muitos anos, talvez séculos. Estamos na redução de danos ainda, precisamos caminhar para revolucionar todas essas estruturas hierárquicas e privilegiadas. Precisamos mexer profundamente nas estruturas sociais e o teatro não escapará ileso. Não tem mais volta.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Quais atores, diretores e dramaturgos você admira e por quê?
JÉ OLIVEIRA — Pergunta difícil de responder assim, dá medo de ser injusto com muitas pessoas e com certeza seria. Então não responderei. Com mais tempo podemos falar sobre isso com todo prazer, admiro muita gente…

Jé Oliveira em cena da peça Farinha com Açúcar ou sobre a Sustança de Meninos e Homens, do Coletivo Negro - Foto: André Murrer/Divulgação

Jé Oliveira em cena da peça Farinha com Açúcar ou sobre a Sustança de Meninos e Homens, do Coletivo Negro – Foto: André Murrer/Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Na área teatral atual, quais negros você acha que fazem a diferença?
JÉ OLIVEIRA — Muitos, muitos mesmo. Estamos minimamente organizados em rede e isso é motivo de muita felicidade já que todo tipo de organização nos é muito caro devido a inúmeros fatores. Fui convidado a estar ano passado no Fórum de Performance Negra em Salvador, organizado pelo Bando [de Teatro Olodum] e pela Comuns, e lá estavam muitos artistas que admiro…. Fomos em caravana daqui de SP: nós, Os Crespos, Capulanas Cia de Arte Negra, Allan da Rosa, Dirce Thomaz. Lá em BH também tenho vários parceiros. Não é possível citar assim nominalmente porque estamos avançando coletivamente, não precisamos pessoalizar as conquistas agora…

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você pesquisa o teatro negro na sua graduação em Ciências Sociais na USP. Pretende fazer mestrado e doutorado nessa área?
JÉ OLIVEIRA — Sim, ainda tenho muitos desejos e possibilidades. Pretendo refletir melhor para entender qual o caminho mais necessário no momento. Muitas instâncias me excitam como possibilidade de pesquisa. Ainda há tempo para amadurecer. Mas penso ser necessário ocuparmos esses lugares como as nossas versões da história. Se não farão conosco no futuro o que hoje fazem com o TEN – Teatro Experimental do Negro: invisibilizam e apagam da história cênica do país. Eu não ouvi falar do TEN nos cursos de teatro que fiz: SENAC e Escola Livre de Teatro de Santo André, por exemplo, quem me revelo a importância disso foi o rap. De um modo geral as instituições de ensino teatral, técnico ou não, não refletem sobre esse acontecimento racial e artístico tão importante como foi o TEN. Não tenho notícias de que seja diferente em nenhuma outra instituição também.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por que você faz teatro?
JÉ OLIVEIRA — Para poder interferir por meio da ação no rumo das coisas, nas construções de imaginário e simbologias, cosmogonias. Para poder refletir sobre o nosso país, sobre os meus, sobre os desejos de mundo que crio, para respirar nesses tempos que vivemos, para encontrar as pessoas, rir, chorar, cantar…. Criar universos temporários e labutar para que se expandam e alcancem seus limites, a arte não dará conta de tudo, o teatro muito menos, mas é uma instância importante de reflexão pública. Me sinto encantado por poder fazer isso da minha vida, penso que em breve o encanto perca sua validade…. Enquanto isso, estamos vivos e caminhando para sermos perigosos…

Acompanhe o Coletivo Negro no Facebook

Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens
Quando:
De 15 de março a 6 de abril de 2016. Terças e quartas, às 21h.
Duração: 80min
Capacidade: 356 lugares
Onde: Teatro do Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo
Quanto: R$ 6,00 (credencial plena/trabalhador no comércio e serviços matriculado no Sesc e dependentes), R$ 10,00 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino) e  R$20,00 (inteira)
Classificação indicativa: Não recomendado para menores de 16 anos

Curta nossa página no Facebook e siga o site!

Fique por dentro do que está rolando nas artes

 

Please follow and like us:

1 Resultado

  1. 18/03/2016

    […] “Negro é a raiz da liberdade” Jé Oliveira, na última Entrevista de Quinta, explicou por que seu grupo resolveu criar o Coletivo Negro: “Porque não nos sentíamos representados em quanto negros pelos trabalhos que víamos e que por vezes até fazíamos em outros coletivos. Não nos víamos como personagens complexos, não nos vimos no público. Entendemos que nosso empenho de vida, enquanto negros e negras, precisa ser refletido, problematizado, dialetizado, celebrado em cena e por meio da cena. É uma necessidade vital de refletir sobre o país e sobre quem somos nesses tempos em que vivemos”. O grupo faz temporada da peça Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens no Sesc Pompeia. Leia a entrevista completa. […]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *