Carnaval de rua de BH é ato político, de resistência

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Carnaval é ato político, aprendi ainda pequeno com minha avó, desfilando no Afoxé Ilê Odara. Não adianta negar. Carnaval é se rebelar, nem que seja por poucos dias, contra um sistema opressivo que nos enfiam goela abaixo sem nos explicar o porquê.

E o Carnaval de Belo Horizonte é prova concreta de que folia e manifestação são uma coisa só. Talvez, por isso mesmo, o Carnaval belo-horizontino tenha provocado a fúria da polícia, com bombas e balas de borracha nos foliões.

Apesar de ter construído boa parte de minha trajetória profissional em São Paulo, sou nascido e criado em Belo Horizonte, com muito orgulho. E é lá que mora meu Carnaval.

Afoxé Ilê Odara

Desde pequeno, fiz parte da folia cidade, na época, desfilando pela avenida Afonso Pena. Cresci vendo a festa de dentro, como um grito político da negritude.

Logo que nasci, minha avó paterna, Oneida Maria da Silva Oliveira, a ialorixá Mãe Gigi, criou, ao lado do bailarino Márcio Valeriano e sob as bênçãos do padrinho Gilberto Gil, a quem ela chamava de Meu Neguinho, o primeiro afoxé de Belo Horizonte: o Afoxé Ilê Odara, que desfilou na capital mineira durante praticamente toda a década de 1980.

Pequenino, não perdi um desfile do Afoxé, fosse na ala das crianças comandada por minha tia Leide, Rosileide Oliveira, ou orgulhoso ao lado de minha avó, desfilando na abertura do desfile, ao lado do porta-estandarte.

O Afoxé marcou minha infância (e a vida de toda minha família) de forma determinante. Até hoje sei cantar seus enredos, como Caboclo Pai, Menino do Bloco ou Mãe, Mãe, que emocionou a todos no Carnaval de 1988, quando, pouco antes da folia, vovó se despediu de nós, em composição de seu filho Reinaldo Oliveira –depois o Afoxé se transformou na Banda Axé Ilê, que fez sucesso nos anos 1990.

Com a morte de vovó, o Afoxé perdeu força juntamente com o Carnaval de BH. Parece que era seu talismã. Assim, a folia praticamente deixou de existir durante o fim da minha infância, adolescência e tempos de faculdade na Fafich-UFMG. Nesta época, para pular a folia, só rumando para as cidades históricas ou indo para Rio ou Salvador.

Retomada 

Assim, quando deixei Belo Horizonte rumo à vida profissional de jornalista em São Paulo em 2007, o Carnaval de BH era apenas uma lembrança do passado. Só que, dois anos depois, isso começou a mudar.

A partir de 2009, passei a ter notícias de amigos queridos, muitos colegas na UFMG, que criavam blocos para expressar seu Carnaval. Recuperavam o direito político de ser um folião.

Passei a ver também, com alegria, o surgimento de blocos negros, celebrando a tradição afrodescendente nas ruas mineiras, terra construída com tanto suor negro nas tais Minas Gerais — como aprendi com minha avó Oneida, mineira de Ouro Preto.

Horror elitista

Diante do povo que passou a invadir as ruas em festa, o poder público da capital mineira tentou (e ainda tenta) desmobilizar o Carnaval. Ou (pior) se apropriar da festa que surgiu de forma espontânea, por vontade (ou resistência?) do povo.

Reiteradas tentativas de regulamentação e comercialização da festa criam ordens absurdas, como a obrigatoriedade de os ambulantes venderem apenas a cerveja autorizada pela Prefeitura para patrocinar seu (???) Carnaval — cerveja transgênica, diga-se — ou a criação de um camarote privado no meio da festa — horror elitista do qual BH não precisa.

Em vez de desmobilizarem a festa, tais ideias estapafúrdias acabam por fortalecer ainda mais o Carnaval de rua de BH. A festa só cresce, por mais que a Prefeitura insista em colocar grades desnecessárias em via pública. O povo encontra brechas em seu brincar espontâneo.

Foi por apoiar e me emocionar de longe com todo este movimento que neste ano determinei cumprir o desejado: passar o Carnaval em minha cidade. Assim, nos últimos dias, estive nas ruas de Belo Horizonte, em blocos variados.

Negritude exuberante

Vi o povo feliz, fantasiado, brilhante, em êxtase em seu ocupar pedestre de cada espaço da capital mineira. Uma mistura de classes, cores e ritmos, repleta de intensidade e querer bem. Foi lindo de ver. De sentir.

Vi também, orgulhoso, a força do povo negro viva e resistente no Carnaval — mesmo com as tentativas de usurpação de seus símbolos e discursos por uma elite perversa em blocos falaciosos.

Na contramão dessa violência representativa, blocos como o Angola Janga, com sua negritude exuberante representada por sua rainha negra e trans Cristal Lopez, ou o Dreadlocko, com o batuque ritmado sob batuta do também negro Sérgio Pererê, me fizeram sentir que minha avó estaria feliz ao ver que aquela sementinha plantada por ela mais de 30 anos atrás deu certo, que o Carnaval voltou a ser um movimento político por natureza, como aprendi no Afoxé Ilê Odara, de volta às ruas neste último Carnaval.

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12 Resultados

  1. Prezado Miguel, se vc conseguiu ver em nós as flores da semente que sua vó plantou, alcançamos nossos objetivos. <3

    • Milene disse:

      Me apaixonei de cara por vcs! Quanta beleza! Garra! Gingado! Energia! Agradeço humildemente por tudo que me proporcionaram viver ao lado dos seus batuques e diante dos seus sorrisos! Minha descoberta do ano, sejam muito benvindos ao circuito carnavalesco de BH e por favor, não nos deixem! Lindas e lindos de viver! !!! Força nas tamancas! Resistência sempre! O Brasil precisa de vcs!

  2. Milene disse:

    Sim! Sim! Lindo de ver e viver! !!!! E não foi só a beleza negra e trans que invadiu a rua, que é nossa! Teve Pula Catraca, Bicicletinha, Devassas, Baianas, Olorum, ode as prostitutas da Guaicurus, gritos de “chuta a família mineira “, e apelos em defesa da mulher, e da diversidade cultural, sexual, religiosa, e de ocupação do espaço público, por todos nós, de modo brilhante! Especial e mágico, o carnaval não está só de brincadeira! Fico orgulhosa! E agradecida a todos que aqui resistem e dançam e sorriem até quando o coração sangra, por tudo que têm conseguido aqui e pelo nosso Brasil que ainda tanto precisa! Angola Janga, ameiiiiii vcs! ! ! Sejam muito benvindos ao Carnaval de BH e não nos deixem nunca! Agradecia estou! Axe!

  3. Vania do Paixao disse:

    Miguel lembro-me de vc, criança, acompanhando a galera do Axé Ilê! Fiquei feliz em saber que hj é um jornalista e continua perseguindo a causa. Gostei da materia. Parabens!!!!!

  4. Otto Castro disse:

    “O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e
    acolher a gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação das
    identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela
    indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos
    (negros com brancos), caboclos (brancos com índios) ou curibocas (negros
    com índios)” (RIBEIRO, 2006, p. 119).

  5. JOÃO BOSCO BUSCACIO disse:

    O carnaval sempre foi canal para manifestações políticas e é importante que continue sendo ,sem perder a alegria e a irreverência .

  6. Reinaldo Oliveira disse:

    Toda beleza vem do negro ,com certeza recebo a grandeza,aqui em Belo o bloco afro já cantou,produzido por Mae Gigi tanta gente chorou,seu tempo de alaque para poder passar,Olorum mu do pé ,Mae Gigi homenagear com sua beleza y toda grandeza rasta fary com o velho Odara, aparthay os Reis aparthay os Reis iaia,onde o índio y o branco unidos alegres para impressiona. Letra Música de Reinaldo Olveira seu genitor. Toda essa beleza! Dios venga lo bendizer mi hijo!

  7. Daniel Ayer Quintela disse:

    Salve!!
    Fiquei muito feliz de ler esse texto, reforçar a verdadeira história do carnaval de BH!
    Fiquei feliz em saber de sua avó, gostaria de tê-la conhecido!
    Fica aqui meu desejo de ver o Afoxé Ilê Odara de volta a Afonso Pena, desfilando a beleza e a residência do povo negro belorizontino!!
    Axé!
    Saravá!

  8. Beatriz disse:

    Quero sair no Afoxé Ilê Odara ano que vem!!!

  9. Denilson Moreira disse:

    Boa materia, porem mal contada pois quando mae Gigi faleceu o afoxe ile odara se tornou a banda Axe Ile estou vendo materias por ai dizendo que a Banda Porto de Minas foi a primeira e algumas dizendo que foram os pioneiros de BH ,isto não e verdade so nâo estou entendendo porque não estão citando o nome da banda Axe Ile ????

    • Miguel Arcanjo Prado disse:

      Denilson, tudo bem? O nome da banda Axé Ilê, que veio posteriormente ao Afoxé Ilê Odara, está citada na matéria. Obrigado!

  1. 01/05/2020

    […] É por isso que não adianta políticos – e seus apaniguados – tentarem roubar o protagonismo popular na retomada da folia belo-horizontina. Porque o sucesso do Carnaval de BH é mérito do povo, não do poder público. Como este mesmo colunista escreveu em 2016, o Carnaval de rua de BH é ato político, de resistência. […]

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