Crítica: Com Eva Wilma, Azul Resplendor é grito de guerra do velho contra a prepotência do novo
Por Miguel Arcanjo Prado
A vida passa rápida como a chama de um fósforo – e tal constatação só surge na parte final. Ela tem seu início, quase que mágico, seu momento de fogo intenso, robusto, até que, aos poucos, o calor se dissipa e, quando menos se espera, assume um tom azul derradeiro antes do fim inevitável.
Tal imagem, cheia de poesia e significado, abre e encerra Azul Resplendor, peça em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo.
E nesta existência efêmera, a força jovem muitas vezes vem como um trator, passando por cima de tudo e todos, deixando aos que estavam antes a sensação de desnorteio e com um murmúrio inaudível na boca.
Em uma premissa darwiniana, quem não se adapta e não se reconfigura aos novos moldes está fora do jogo – só que, neste caso, sem que tal adaptação signifique de fato uma evolução. Assim é em qualquer campo da vida, pessoal ou profissional, incluindo aí a vida artística.
Defender o espaço e ponto de vista pré-existentes ao novo subtende-se postar-se de fora com uma espada, como dizia Vinicius de Moraes, ciente de enfretamento de guerra sem fim.
60 anos de carreira
Azul Resplendor tem como grande marco a comemoração dos 60 anos de carreira da atriz Eva Wilma, que assume o papel principal, a atriz Branca Estela Ramírez, uma verdadeira estrela de todos os tempos, assim como Eva o é.
A peça é fruto da farta pesquisa do teatro latino-americano feita pelos diretores, Roberto Borghi e Elcio Nogueira Seixas, em nossos países vizinhos. Em breve, a viagem Embaixada do Teatro Brasileiro, na qual realizaram 200 entrevistas com dramaturgos de 15 países, resultando em mais de 1.200 peças recolhidas, dará origem a livros e outros projetos na internet e na televisão.
Pois foi no meio desta pesquisa que eles se depararam com Azul Resplendor, do peruano Eduardo Adrianzén, dramaturgo de teatro e TV reconhecido em seu país.
Elenco
Eva Wilma é a escolha perfeita para o papel, porque instiga a plateia o tempo todo. Assim como Blanca, também é uma atriz que faz parte do imaginário popular, dando vida a papeis inesquecíveis no palco, no cinema e na TV. Apesar de terem uma diferença básica: Blanca está retirada do palco, já Eva segue aí, firme e forte. Mas é inevitável que o espectador não acabe por misturar as duas, mesmo que só em alguns momentos, por mais que o trabalho de Eva na construção da personagem seja fundamental e digno de aplauso farto.
Já Pedro Paulo Rangel faz Tito Tápia, um ator decadente que resolveu escrever e montar a peça de sua vida só para dar uma volta triunfal aos palcos a Blanca, já retirada da cena, com quem viveu seus melhores dias no palco – mesmo que só fizesse pontas – e por quem nutre amor platônico.
Rangel empresta seu farto carisma e talento já comprovado em mais de 40 anos de carreira a Tito, fazendo dele um personagem querido pelo público logo que diz a primeira frase. A doçura e inocência diante da vida e do próprio fracasso do personagem servem de alento diante da amargura e verdades cruas que saem da boca de Blanca, realista por demais.
Para fazer seu sonho virar realidade, Tito investe uma herança para contratar o diretor em voga no momento, Antonio Balaguer, papel de Dalton Vigh. Sua atuação, mais histriônica, tem explicação: faz lembrar a arrogância e prepotência dos (já não tão novos) nomes surgidos no teatro brasileiro com a promessa de fazer uma nova arte cuspindo em cima de tudo que foi feito antes. E que acabam mergulhados nas polêmicas que não se cansam de provocar em uma ânsia de aparecer sem fim, tão histriônicos, ou ainda mais, do que o personagem de Vigh.
Ainda compõem o elenco Luciana Borghi, como a frustrada assistente de Balaguer, e Paula Picarelli e Felipe Guerra, como os rostinhos bonitos da TV chamarizes de público convidados pelo diretor-estrela para a montagem do texto de Tito Tápia com Blanca Estela.
Veteranos brilham
O elenco veterano é infinitamente melhor do que o elenco jovem. Experientes e convincentes, Eva Wilma e Pedro Paulo Rangel carregam o espetáculo nas costas. Fazem rir e ao mesmo tempo comovem, como grandes atores costumam fazer.
Já Dalton Vigh é uma espécie de ponte entre os consagrados e o elenco jovem. A peça chega a cair vertiginosamente durante o inverossímil monólogo de Luciana Borghi. Mesmo assim, Eva e Pedro conseguem recuperar a atenção e disposição do público.
Os outros dois atores cumprem suas funções. Paula Picarelli, que chega a dar uma escorregada no fácil caminho do besteirol, se recupera e vai bem grande parte de suas cenas. Já Felipe Guerra é melhor quando exibe seu corpo trabalhado na academia.
Os diretores tentam manter o fôlego da obra, perdido em alguns momentos, com a ajuda da luz presente de Lúcia Chediek e do duro, mas belo, cenário de André Cortez.
Grito de basta
Impressiona na peça a universalidade do texto de Adrianzén. Este parte, inteligentemente, da realidade do teatro para retratar o que ocorre o tempo todo neste mundo de modernidade líquida – como definiu o sociólogo Zigmunt Bauman: o velho é substituído pelo novo sem nenhuma sombra de culpa ou dúvida.
Não há lugar mais para a tradição, para a certeza. Todos estão mergulhados dos pés à cabeça na velocidade estonteante do ego e das relações frias, velozes e, cada vez mais, inverossímeis e superficiais.
Azul Resplendor é um grito de basta. No espetáculo, ecoa o berro: “Nós, os que estávamos antes, ainda estamos aqui e não somos lixos a serem jogados na primeira lata que apareça. Lixo são vocês”. A peça é a poética constatação de uma guerra sem fim, feita de soldados que morrem e renascem o tempo todo, no acender e apagar de um fósforo.
Azul Resplendor
Avaliação: Bom
Quando: Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. 100 min. Até 13/10/2013
Onde: Teatro Renaissance (al. Santos, 2.233, Cerqueira César, Metrô Consolação/Paulista, tel. 0/xx/11 3069-2286)
Quanto: R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia-entrada)
Classificação etária: 12 anos
O Retrato do Bob: Pedro Paulo Rangel, o grande
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Dois ícones: Evinha e Pepê. A peça deve ser total e a todos encantar (ou ao menos a quem se permite olhar de forma crítica esse culto ao corpo lamentavelmente tão em voga).
Os dois grandes talentos. Chega de só rostinho bonito, né, Felipe?
Rostinhos bonitos enfeitam, mas não prendem a atenção de quem assiste ao espetáculo. Tanto a Evinha quanto o Pepê têm uma trajetória rica e respeitada. Quanto aos rostinhos bonitos, quando eles se aliam ao talento, que bom para tais pessoas! O ruim é quando um rostinho bonito tira a vaga de alguém que, por mérito, deveria estar ocupando aquele lugar.
Eva está perfeita, como sempre, mas não achei a peça tão boa assim.