CineBH 2025 por Viviane Pistache: Quando as ladeiras estão prenhas de passado, futuro e cinema

Viviane Pistache assiste a filme na 19ª CineBH © Leo Fontes Universo Produção Blog do Arcanjo 2025

Por VIVIVANE PISTACHE
Especial para o Blog do Arcanjo

A primavera aporta em Belo Horizonte na companhia do cinema. Às cinco horas da tarde de 23 de setembro, a fila dobrando quarteirão na Praça Sete, encarnando uma audiência ansiosa para ver a primeira exibição do Agente Secreto de Kleber Mendonça Filho em terras mineiras. A exibição começou por volta das 21:30, após a cerimônia de abertura da 19a. edição do CineBH, o terceiro festival do calendário da Universo Produção no estado, depois de Tiradentes e Ouro Preto. 

O palco do Cine Theatro Brasil então se abre para a performance do Agbara Groove um quarteto de percussão que tem tanto a força Ilú Obá De Min, das mulheres que tocam tambor, como o axé de Ilu Inã, que traz a alma do fogo para a apresentação incendiária do Favelinha Dance, com a batida do funk que num passado recente era um ritmo interditado em festas de abertura de festivais de cinema de grande prestígio e tradição. Ao coro de talentos se soma a multiartista Josy.Anne com uma releitura contemporânea da congada mineira. Nessa encruzilhada da ocupação com o espetáculo, a apresentação da noite esteve sob a regência de David Maurity que tem carimbado seu nome na cena política e cultural de BH desde a Gaymada, povoando a Praça da Estação com muita viadagem.  Em sua companhia esteve Lira Ribas, atriz, cantora, rainha da Corte Devassa  e filha de Marku Ribas, patrimônio da música preta mineira. A noite ainda reluziu negritude com o ator Carlos Francisco, o grande homenageado desta edição.

Quem frequenta os festivais da Universo Produção certamente conhece a capacidade de articulação e diálogo da dupla Raquel Hallak e Quintino com instituições e o poder público. Assim, dentre as autoridades presentes na abertura certamente estavam figuras parlamentares da militância da cultura como Cida Falabella e Bela Gonçalves, ou representantes da Petrobrás, patrocinadora master do festival ou ainda o aliado Tribunal de Contas do Estado ou do poder executivo do município. 

De alguma maneira, a cerimônia de abertura foi um preâmbulo cuja contemporaneidade contextualiza bem uma obra que revisita um Brasil de 1977 oferecendo uma tradução possível de tempo despudoradamente autoritário, corrupto e racista, mas sem se esquivar da comicidade das caricaturas dos tipos populares, dos folclores e lendas urbanas. Resulta assim numa obra que amalgama bem fatos e apagamentos históricos com realismo fantástico numa imponente e deliberada crônica do absurdo atualizada perenemente. 

Assim, o Agente Secreto é também uma prosa grandiloquente entre passado e o contemporâneo em que o Recife é palco do carnaval, da anarquia cômica, (mas organizada em figuras como a dona Tânia), além de ser capital da pesquisa científica inventiva (ainda que sabotada), ou lar para refugiados políticos que vem desde a guerra de libertação de Angola ou do exílio imposto pela famíloa, a exemplo do jovem negro gay, ainda que seja um personagem desdentado e subserviente, num horizonte estreito de existência. Kleber Mendonça não se esquiva de rememorar os ecos da Casa Grande e Senzala, como uma matraca indiscreta. 

Ancorado numa estética da nostalgia de um país do desbunde ordinário reencenado com uma direção de arte apurada, fotografia que reproduz a textura de película, cortes em cortina, formato panorâmico, etc, O Agente Secreto é tanto uma carta de amor ao povo brasileiro, pleno de virtudes e vícios; mas também a uma certa cinefilia da infância do diretor. Neste thriller policial e político, com uma estrutura espiralada que desfila um coral de personagens com mais ou menos destaques, numa alegoria arquetípica, o diretor equilibra bem as noções de afeto e abjeto. Um filme que traz um álbum de família que cheira tanto à naftalina quanto à putrefação da ditadura miliciana. Assim, Recife se apresenta calorosa  como um carnaval que contempla desde Marcelo/Armando, um agente clandestino que também é um pai, um marido e um professor injustiçado, estrelado por Wagner Moura; Dona Tânia Maia que dá corpo à Sebastiana como um senhorio que é uma matriarca vanguardista e hilária, que abra sua pensão para subverter a ideia de “quarto de despejo”; o ator homenageado Carlos Francisco como Seu Alexandre, um projecionista negro que é um grande conhecedor de cinema, ainda que invisibilizado em sua caverna. Mas é também a mesma capital que acolhe Euclides (Robério Diógenes) como um delegado coringa, um trickster representante da banda podre dos agentes públicos e tal como um fio desencapado, além de ser completamente imprevisível, é catalisador da emergência e reprodução de outros vermes do submundo do crime. 

Agente Secreto é um filme que celebra a festa, a comédia, a rua, o cinema, de maneira lúdica e onírica,  mas é também um filme de pesadelos, bem sintetizado na metáfora do tubarão, como blockbuster e como signo do perigo que habita a orla paradisíaca de Recife. Um encontro entre  poética e necropolítica que abre alas para a edição de um festival cujo recorte curatorial é “Horizontes Latinos: Nós Somos o Futuro?”. Um tema que depende do passado no retrovisor como companhia dinâmica e perene. 

Viviane Pistache – Foto: Leo Fontes Universo Produção Blog do Arcanjo 2025

Viviane Pistache é preta, mineira, pesquisadora, roteirista, curadora e, de vez em quando, crítica de cinema. 

O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viaja a convite da CineBH. Conteúdo produzido em parceria com a Universo Produção. Acompanhe a coberturra da Mostra CineBH!

Blog do Arcanjo mostra imagens da 19ª CineBH

Editado por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige Blog do Arcanjo e Prêmio Arcanjo. Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Cultura pela USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, Folha, Ed. Abril, Huffpost, Band, Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra os júris: Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio do Humor, Prêmio Governador do Estado, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio DID, Prêmio Canal Brasil. Venceu Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio ANCEC, Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado.
Foto: Rafa Marques
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