★★★ Crítica: Vida Útil faz humor crítico sobre as tensões no trabalho

Vida Útil faz crítica mordaz ao mundo corporativo © Rodolfo Abreu Divulgação para Miguel Arcanjo 2025

Por ÁTILA MORENO
Especial para o Blog do Arcanjo

★★★
VIDA ÚTIL
Avaliação: Bom
Crítica por Átila Moreno

A peça “Vida Útil”, em curta temporada no Teatro Ziembinski, na Tijuca, não é apenas uma comédia simplória: é um espelho afiado do cotidiano profissional. O espetáculo leva o público para dentro de um escritório, onde os colaboradores estão à beira de um ataque de nervos e ansiosos para terminar o expediente numa típica sexta-feira. Quando uma tarefa esquecida os obriga a estender a jornada, a rotina se transforma em um campo minado de tensões e revelações.

Elenco, humor e acidez na dose certa

A comédia de Rafael Martins pode até ser vista como um “estudo de caso cômico” sobre o ambiente tóxico e caótico do trabalhador brasileiro. E os números não deixam mentir:

Dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que a falta de saúde mental acarreta a perda anual de 12 bilhões de dias de trabalho e aproximadamente um trilhão de dólares para a economia global.Transtornos como depressão e ansiedade estão entre as principais causas de afastamento profissional.

Um cenário universalizado com maestria e milimetricamente conduzido pelo quarteto em cena: Julia Couto, Lay Ribeiro, Lucas Miranda e Luciano Pontes.

O grupo demonstra uma sintonia notável ao equilibrar o humor afiado com o peso da crítica social, dando vida a estereótipos corporativos que, embora caricatos, são dolorosamente reais.

Eles expõem situações de desvalorização, assédio e abuso de poder com uma leveza que desarma o espectador ao mesmo tempo que eleva a reflexão sobre as tensões e conflitos do mundo do trabalho.

O texto é complementado pela direção de arte e figurino. Enquanto a direção de Marcelo Morato garante o ritmo frenético da claustrofobia no escritório, o figurino, assinado por Wanderley Gomes, usa a sobriedade do vestuário corporativo como uma farda que, ironicamente, aprisiona os colaboradores.

Destaque do teatro carioca, Vida Útil faz crítica mordaz ao mundo corporativo © Rodolfo Abreu Divulgação para Miguel Arcanjo 2025

A crise da saúde mental e a vida útil do indivíduo

Diante deste cenário, o caos de “Vida Útil” pode ser lido sob a lente da Sociologia das Organizações, tendo como referência principalmente autores como Max Weber e Michel Crozier.

A burocracia como jaula de aço: a lógica organizacional retratada reforça a ideia weberiana de que o trabalho moderno aprisiona subjetividades. Os personagens sabem o que devem fazer — e sabem que não podem sair — porque estão presos não apenas fisicamente, mas, simbolicamente, a normas e expectativas inquestionáveis.

O poder que circula e oprime: Crozier descreve as organizações como arenas de jogos de poder. Em Vida Útil, isso aparece na relação vertical entre chefias invisíveis e funcionários acuados, bem como nos microconflitos e microagressões entre colegas, que disputam reconhecimento, sobrevivência emocional e até a falsa sensação de controle.

Alienação do trabalhador: a noção de “vida útil” ganha aqui um sentido brutal: o trabalhador é medido por sua produtividade, e tudo o que escapa à engrenagem — sonhos, desejos, prazer, propósito — é visto como desperdício.

Ao trazer para análise essas teorias em situações cômicas e profundamente humanas, a peça torna acessível uma crítica estrutural ao modelo corporativo que molda (e adoece) milhões de pessoas.

Quando os personagens se veem trancados e esquecidos, eles estão no ápice da representação dessa lógica: eles são apenas recursos descartáveis, sua existência é reduzida à sua utilidade de produção. O espetáculo nos convida a repensar, como diz o diretor Marcelo Morato, a necessidade de “remodelar nossas rotinas” para que a vida seja “mais prazerosa, sem deixar de ser produtiva”.

O espetáculo “Vida Útil” é necessário para quem busca rir com pensamento crítico e, mais importante, para quem precisa de um empurrão reflexivo para reavaliar a própria trajetória profissional.

Vida Útil

Curta temporada: Até 23 de novembro de 2026 – sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h.
Teatro Ziembinski: R. Urbano Duarte – Tijuca – Rio de Janeiro-RJ
Ingressos: https://ingressosriocultura.com.br/riocultura/events

Editado por Miguel Arcanjo Prado

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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige Blog do Arcanjo e Prêmio Arcanjo. Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Cultura pela USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Três vezes eleito um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, Folha, Abril, Huffpost, Band, Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra os júris: Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio do Humor, Prêmio Governador do Estado, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio DID, Prêmio Canal Brasil. Venceu Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio ANCEC, Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado.
Foto: Rafa Marques
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