★★★★ Crítica: Una Casa Con Dos Perros impõe sofisticação ao concentrar crise argentina em um lar

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Enviado especial a Belo Horizonte
★★★★
Una Casa Con Dos Perros
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Filme visto na 19ª CineBH
O jovem diretor e roteirista argentino Matías Ferreyra realiza em Una Casa Con Dos Perros (Uma Casa com Dois Cachorros, em tradução livre) uma notável estreia cinematográfica em longa, criando um filme de atmosfera, que nos remete imediatamente à obra da grande cineasta argentina Lucrecia Martel. Apresentado pela primeira vez no Brasil em sessão aplaudida neste sábado, 27, na 19ª CineBH, a produção é da região de Córdoba. A província que tem se mostrado um polo interessante e autêntico para o audiovisual argentino, geralmente mais obcecado por Buenos Aires e sua elite portenha, revelando novas poéticas e perspectivas interioranas e mais populares. O filme tem sofisticação e delicadeza ao abordar a crise de uma família cordobesa que espelha a famosa crise de 2001 na Argentina, quando a economia do nosso país vizinho entrou em bancarrota, com o roubo das economias bancárias do povo pelo governo, do mesmo jeito de Fernando Collor fez no Brasil de 1992. Mas, isso é apenas o pano de fundo do longa, que foca na arena mais íntima: o lar, lugar no qual os embates primários humanos têm força indizível. No filme, a casa está longe de ser um porto seguro, mas uma espécie de trincheira de uma guerra nem sempre silenciosa. Um lugar que cheira a podre, como exala a geladeira, em excelente simbolismo. A chegada do menino Manuel (o doce Simón Boquite Bernal) para viver na garagem da casa da avó materna, junto de sua família, com dois irmãos e pais desamparados, cria uma situação complexa e jogos de poder. A avó, “La Tati” (a ótima Magdalena Combes Tillard), acende um conflito pela ocupação dos espaços. Esta luta silenciosa por metros quadrados simboliza a guerra de classes e gerações forçadas à coabitação pelo colapso do sistema, não muito diferente do que acontece na Argentina atual, novamente em crise financeira com o governo beligerante de Javier Milei, que desmantelou o INCAA, o Instituto Nacional de Cine e Artes Audiovisuales da Argentina, órgão federal que patrocinou Una Casa Con Dos Perros. Ferreyra, com um estilo de notória clareza estética, utiliza a casa como um organismo em sofrimento, pontuado pela excentricidade de La Tati, uma mulher que habita um universo paralelo — e que vê um cachorro morto. Tal elemento, somado à figura do excêntrico tio Raúl (Emilio Silber) e à tensão dos pais (Vanina Bonelli e Maximiliano Gallo), transforma o ambiente num caleidoscópio de ansiedade. A direção de Ferreyra, marcada pela câmera atenta aos detalhes, mas avessa ao exagero, capta a violência submersa sem a necessidade de explosões dramáticas. A fotografia de Nadir Medina, com sua luz de verão implacável, acentua a sensação de confinamento. É na cumplicidade terna e inesperada entre o garotinho Manuel e a avó que o espectador encontra um lampejo de resistência. Este vínculo insólito é o estuário para a subversão da ordem familiar tóxica. O filme se estabelece como um pungente testemunho do desamparo social, narrado pela ótica de quem observa o naufrágio sem compreender inteiramente sua dimensão, como é típico do universo infantil. Una Casa Con Dos Perros é um filme que eleva o drama doméstico a uma aguda reflexão sobre a herança de traumas na América Latina contemporânea, que parece não conseguir ter dois segundos de paz.
★★★★
Una Casa Con Dos Perros
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
Filme visto na 19ª CineBH
O jornalista e crítico Miguel Arcanjo Prado viaja a convite da CineBH. Conteúdo produzido em parceria com a Universo Produção. Acompanhe a coberturra da Mostra CineBH!
Matías Ferreyra

Diretor e roteirista. Formado em cinema pela Universidade Nacional de Córdoba. Atuou como roteirista tanto em animação quanto em ficção, em diferentes formatos. Trabalhou como roteirista no canal infantil Paka Paka e em projetos independentes do Estúdio OSA. Seus curta-metragens participaram de festivais como Annecy, Guadalajara, Prêmios Quirino, Prix Jeunesse, entre outros. Ainda como estudante, escreveu e dirigiu os curtas CAMPO SANTO (ficção em 16mm) e NOS(OTRXS). Em 2017, foi selecionado para uma bolsa de formação em roteiro em San Antonio de los Baños, Cuba.