Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é livro necessário | Por Felipe Moretti

Por Felipe Moretti
Especial para o Blog do Arcanjo*
Torto Arado é um romance do soteropolitano Itamar Vieira Junior, formado e mestre em geografia pela Universidade Federal da Bahia e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela mesma instituição. O livro foi publicado no ano de 2019, pela editora Leya, e venceu os prêmios Jabuti e Oceanos em 2020.
Sem dúvida, é possível enxergar o conhecimento profundo do autor em sua obra de ficção. Materializar o conhecimento pessoal e acadêmico em um romance é uma das melhores formas de apresentar todo conteúdo adquirido e dar acesso a população sobre uma temática e situação que, ainda, permanece em nosso país.
O livro é dividido em três partes e é impossível parar de lê-lo, mesmo sem entender, a princípio, quem está de fato narrando a história. Há um mergulho intenso na vida de Bibiana e Belonisia, irmãs que percorrem toda a narrativa do romance. O interior da Bahia, Chapada Diamantina, é o plano de fundo de toda a trama.

É possível enxergar e sentir as paisagens descritas pelo autor. As casas feitas de barro permitem evidenciar um Brasil que sucumbe e se reergue a cada tempestade ou mudança. As terras, arduamente trabalhadas pelos quilombolas durante toda a trama, não pertencem a eles. O barro e a terra, trabalhados pelos personagens, quase se fundem a eles, sendo impossível dissociar as pessoas daquele chão.
A luta pela terra é marcada pelo Severo. A tentativa de dar a população que vivia na fazenda Água Negra um pedação daquele solo é marcada por sangue e corrupção. É explicito que, no Brasil profundo, as vozes dos mais pobres sempre serão silenciadas e o Estado funcionará como um capataz que subjugará toda e qualquer revolta.
Ancestralidade
A ancestralidade africana é evidenciada pelo candomblé, trazido à obra por meio das personagens Zeca Chapéu Grande e Donana. O conhecimento ancestral está presente em diversas situações do dia a dia e nas “festas de jarê”. Há que se falar, também, da escravidão contemporânea existente na obra, em que aos habitantes de Água Negra é permitido morar e plantar em um pequeno lote de terra, enquanto trabalham arduamente para o fazendeiro, de sol a sol, sem que recebam nada em troca.
A obra nasceu clássica e necessária. Retrata o Brasil escravocrata, machista e desigual. Esperança não é palavra de ordem para o romance, mas a crueza e a dura realidade da vida das personagens se confundem com a poesia de uma vida simples em que a comunidade seria a única força capaz de mudar o status quo da população de Água Negra.
A capacidade de fazer sentir a dor e a alegria dos atores do livro é ponto fundamental e abre feridas e espaço para reflexão do nosso papel e responsabilidade dentro deste território chamado Brasil. Fica o choro, o estômago embrulhado e a necessidade de tentar mudar o país que é retratado na obra. O romance é uma aula de história e um gatilho para quem clama por justiça e igualdade. Um privilégio ter um autor brasileiro com tamanha sensibilidade.
*Felipe Moretti é ator, advogado, cozinheiro amador, companheiro da Gabi e curioso. Artista com sensibilidade para enxergar o mundo ao seu redor, escreveu esta resenha a convite do Blog do Arcanjo.
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Editado por Miguel Arcanjo Prado
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Jornalista cultural influente, Miguel Arcanjo Prado dirige Blog do Arcanjo e Prêmio Arcanjo. Mestre em Artes pela UNESP, Pós-graduado em Cultura pela USP, Bacharel em Comunicação pela UFMG e Crítico da APCA Associação Paulista de Críticos de Artes, da qual foi vice-presidente. Três vezes um dos melhores jornalistas culturais do Brasil pelo Prêmio Comunique-se. Passou por Globo, Record, Folha, Ed. Abril, Huffpost, Band, Gazeta, UOL, Rede TV!, Rede Brasil, TV UFMG e O Pasquim 21. Integra os júris: Prêmio Arcanjo, Prêmio Jabuti, Prêmio do Humor, Prêmio Governador do Estado, Sesc Melhores Filmes, Prêmio Bibi Ferreira, Prêmio DID, Prêmio Canal Brasil. Venceu Troféu Nelson Rodrigues, Prêmio ANCEC, Inspiração do Amanhã, Prêmio África Brasil, Prêmio Leda Maria Martins e Medalha Mário de Andrade do Prêmio Governador do Estado.
Foto: Rafa Marques
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