Crítica: Musical Madame Satã se sobressai com resistência unida à arte
Por Miguel Arcanjo Prado
Falar de João Francisco dos Santos (1900-1976), mais conhecido por Madame Satã, é, antes de tudo, falar de resistência.
Resistência de um homem negro, gay e artista que precisou enfrentar diariamente em sua vida o preconceito, o racismo, a violência de Estado. E que, mesmo assim, conseguiu deixar seu nome cravado na história.
O Grupo dos Dez, de Belo Horizonte, entendeu isso muito bem ao contar, em forma de musical, a trajetória daquele que fez de sua vida na boêmia Lapa das primeiras décadas do século 20 sua maior obra de arte.
A vontade de dialogar, com amor, começa no encontro de gerações na direção, que une as sensibilidades de João das Neves, renomado diretor da história do teatro brasileiro, e o novato, mas já potente, Rodrigo Jerônimo, respeitoso com o mestre, mas detentor de propostas próprias, ainda bem.
O musical começa buscando a rua, palco maior de Satã, para apresentá-lo naquele ambiente que este dominava.
Nas concorridíssimas apresentações paulistanas na Caixa Cultural, na qual este crítico viu a obra, a praça da Sé virou a Lapa carioca — com uma boa dose de imaginação era possível ver até os famosos arcos ao fundo —, com seu movimentar de malandros e prostitutas em meio ao público, mergulhando o espectador no clima do musical.
E, em uma transição sutil, a peça sai da rua e invade o palco, acomoda seu público, instalado em um bordel de vozes potentes bem arranjadas.
É aí que faz toda a diferença a direção musical cuidadosa de Bia Nogueira, também em cena. As vozes, afinadíssimas, se sobressaem, os músicos estão ali, presentes, parte do todo, nos arranjos concebidos por Alysson Salvador.
O elenco se integra entre canto, música e atuação de uma forma cadenciada — mérito também da preparação rítmica de Daniel Guedes e da preparação corporal de Benjamin Abras —, sobressaindo-se mais nas duas primeiras funções.
Estão em cena ainda Alcione Oliveira, Juliene Lellis, Gabriel Coupe, Carla Gomes, Kátia Aracelle, Nath Rodrigues, Thiago Amador, Junim Ribeiro, Jhulia Santos e Sam Luca e sua drag Azzula — de força e canto descomunal.
O jogo entre três atores abraçando a figura de Madame Satã (Denilson Tourinho, Evandro Nunes e Rodrigo Negão) reforça o olhar múltiplo para o personagem repleto de matizes.
O cenário de Cicero Miranda e Débora Alves — também responsáveis pelo figurino —, composto de caixas funcionais que desfilam pelo palco, ajudam no jogo.
O grande mérito desta montagem, a melhor dentro da trilogia afro-mineira de João das Neves, que contou ainda com “Galanga – Chico Rei” e “Zumbi”, é justamente a aposta em dramaturgia e música originais.
E faz toda a diferença esta música ser criada e interpretada por jovens artistas negros que fazem a diferença atualmente não só na cena belo-horizontina como brasileira. Gente que assume as rédeas de contar a história dos seus — quem melhor estaria credenciado a isso?.
Sem hipocrisia demagógica, mas com ações concretas a começar na escalação de um elenco repleto de diversidade sexual, os autores Marcos Fábio de Faria e Rodrigo Jerônimo aproximam, de forma pungente, a trajetória de Madame Satã à de travestis e de transexuais na contemporaneidade, ainda vítimas de uma violenta sociedade racista, opressora, homofóbica, transfóbica, patriarcal e excludente.
“Madame Satã” evoca com respeito os que tombaram na luta, para então seguir em frente. E o faz com punhos cerrados apontados para o alto e de cabeça erguida, no encontro da arte com a resistência.
“Madame Satã” * * * *
Avaliação: Muito bom
Informações: Grupo dos Dez
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