Colunista erra ao ensinar Beyoncé como representar negros

Por Miguel Arcanjo Prado

“Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha. Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”. É com este título e subtítulo que a colunista Lilia Moritz Schwarcz define o novo trabalho da cantora estadunidense Beyoncé, Black is King, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, neste domingo (3).

No texto, Lilia, que é uma pessoa branca, problematiza a nova obra de Beyoncé na tentativa de determinar como a cantora, que é negra, deveria retratar a África de onde vieram seus antepassados escravizados.

De certa forma, mesmo que involuntariamente, o artigo, mais do que criticar Beyoncé, revela o próprio racismo estrutural nele contido.

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Como não poderia deixar de ser, as reações na internet são calorosas — e democráticas —, com muitos negros, negras, e pessoas brancas também criticando o fato de a colunista buscar “erro” na obra de Beyoncé e ainda tentar fazer a artista “entender” como esta deveria fazer seu vídeo ou mesmo como deveria ser seu discurso artístico em relação à negritude, à África e sua ancestralidade.

Lilia ainda diz no texto que é “hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar”, insinuando que a cantora não estaria conectada a uma suposta realidade africana. Mas a própria colunista sequer cita os inúmeros artistas africanos contemporâneos que participam do novo trabalho de Beyoncé.

O artigo só evidencia que os tentáculos do racismo estrutural operam em todos os âmbitos da sociedade brasileira, até mesmo nos campos acadêmicos ditos mais progressistas, como é o caso da colunista da Folha, antropóloga, historiadora e pesquisadora de questões raciais, professora da USP (Universidade de São Paulo) e cofundadora da editora Companhia das Letras.

É revelador, e até pitoresco, entre outras coisas, o fato de o texto se incomodar com “muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal” de Beyoncé, como se uma mulher negra de sucesso no pop e de alta representatividade para negros e negras no mundo todo não pudesse investir-se de glamour, algo exigido pela indústria cultural, mas, pelo jeito, ainda proibido para a mulher negra.

Ironicamente, a própria Lilia parece ter a resposta, segundo ela mesma questionou em seu Instagram, menos de uma semana antes do texto sobre Beyoncé: “Por que será que toda vez que uma mulher se destaca ela é logo atacada?”.

É importante fazer a seguinte analogia para ajudar a entender a situação do texto de Lilia. Seria o mesmo que um artista judeu fazer uma obra sobre o povo judeu e alguém não-judeu vir a público em artigo de jornal para dizer que o artista está errado e ainda se propor a ‘ensinar’ como este artista judeu deveria representar os judeus. Parece absurdo? É o que o artigo de Lilia Schwarcz na Folha faz.

Isso sem falar em tudo que o mundo discutiu — e protestou nas ruas — sobre racismo nos últimos meses. E não custa lembrar que negros e negras são as grandes vítimas desta pandemia, que vem acelerando o genocídio que já estava em curso desta população. E poucos parecem se importar, de fato, com isso.

E é para estes negros e negras, tão aviltados diariamente, que Beyoncé mira seu trabalho, neste tempo tão delicado, ciente do espelho positivo que é para essas milhões de pessoas.

Querer bater em Beyoncé neste momento da história da humanidade por conta de seu figurino é inacreditável.

Por tudo isso, o artigo de Lilia Schwarcz torna-se tristemente pop.

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Repercussão

Iza

A cantora Iza fez um post em seu Instagram e disse o seguinte: “Lilia Schwarcz, meu anjo, quem precisa entender sou eu. Eu preciso entender que privilégio é esse que te faz pensar que você tem alguma autoridade para ensinar uma mulher negra como ela deve ou não falar sobre o seu povo. Se eu fosse você (valeu Deus) estaria com vergonha agora. Melhore”, escreveu Iza.

Ícaro Silva: 'Não existe status social que vai te tirar da sua situação de  afrodescendente no Brasil' - Jornal O Globo

Ícaro Silva

O ator Ícaro Silva também comentou o caso: “Você é uma grande vergonha. Não somente para o Brasil e para o povo preto, mas para todos os povos aqui presentes. Não vejo por onde defender seu declarado racismo, sua arrogância branca elitista em se dar o direito não somente de reduzir uma obra-prima ao nicho ‘antirracista’, mas em acreditar que tem conhecimento antropológico sobre África”, declarou.

PAULA LIMA

Paula Lima

A cantora Paula Lima também se manifestou: “Beyoncé – Queen B sabe, pode e tem todo o direito de falar, criar, imaginar, produzir, clipe, filme mostrando sua visão e entendimento sobre cultura negra, ancestralidade, negritude, realeza e África. Ela é dona do mundo, e pra quem ainda não sabe, informo, ela é negra. Ninguém melhor que uma pessoa negra que será negra até o fim dos seus dias, para contar a história, sobre as dores, os abusos, as injustiças, as frustrações, o reinado e a grande delícia de ser o que se é. Ah, importantíssimo detalhe: não negros não podem dizer como devemos nós negros ser, agir e onde e como devemos ou podemos estar ou ainda como devemos enxergar nossa trajetória.”

Maíra Azevedo, Tia Má

A jornalista e humorista Maíra Azevedo, a Tia Má, também postou sobre o caso: “O erro é uma mulher branca acreditar que pode dizer a uma mulher preta como ela pode contar a história e narrar a sua ancestralidade. A branquitude acostumou a ter a negritude como objeto de estudo e segue crendo que pode nos dizer o que falar sobre nossas narrativas e trajetórias. Lilia é uma historiadora, pesquisa sobre escravidão,?mas está longe de sentir na pele o que é ser uma mulher preta.”

Lilia Schwarcz pede desculpas e admite erro

Após repercussão negativa de seu texto, Lilia Schwarcz usou as redes sociais para fazer o seguinte pedido de desculpas: “Respeito muito o trabalho de Beyoncé. Peço que leiam o texto todo que é muito mais elogioso que crítico. Todo texto pode ter muitas leituras. Me desculpo, porém, diante daqueles que ofendi. Não foi minha intenção. Respeito muito o diálogo e aprendo com ele. Grata.”

Nesta terça (4), no Instagram, Lilia Schwarcz publicou o seguinte texto no qual admite seu erro no artigo, mas ainda acusa o jornal Folha de S.Paulo de ter criado o título e o subtítulo usando palavras que não teria escrito e diz que a publicação também deveria admitir seu erro.

“Passei as última 48 horas praticando a escuta. Conversei com pessoas amigas e críticas, e rascunhei essa mensagem inúmeras vezes. Não deveria ter aceito o convite da Folha, a despeito de apreciar muito o trabalho de Beyoncé; seria melhor uma analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o filme abordam. Ao aceitar, não deveria ter concordado com o prazo curto que atropela a reflexão mais sedimentada. Deveria também ter passado o artigo para colegas opinarem. Não ter dúvidas é ato de soberba. Também não deveria ter escrito aquele final; era irônico e aprendi que é melhor dizer, com respeito, do que insinuar. A primeira parte do artigo eleva a obra de Beyoncé, o que não é favor algum: trata-se de uma celebração da experiência negra realizada por uma das maiores artistas do nosso tempo. Apesar da minha carreira na área, não se está imune à dimensão do racismo estrutural e da branquitude. Errei e peço desculpas aos feminismos negros e aos movimentos negros com os quais desenvolvi, julgo eu, uma relação como aliada da causa antirracista. Assumo a minha responsabilidade pelo artigo e não pretendo vencer qualquer discussão. Quando uma situação dessas se monta, todos perdem; tenho consciência. Penso que a Folha de S Paulo deveria assumir sua responsabilidade, também, pois é de sua editoria o título e o subtítulo que não usam minhas palavras. Não falo em “erro”, tampouco que Beyoncé “precisa entender” ou que usa “artifício holliwodyanno” no meu artigo. Agradeço, assim, aos que fizeram críticas construtivas, sigo aprendendo com elas.”

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8 Resultados

  1. Andre disse:

    As críticas são absolutamente corretas, mas deveriam ter a fonte de onde elas saíram, que por sinal são a maioria de mulheres pretas

  2. Deivy disse:

    Lilia não só erra na sua crítica, quanto mostra como brancos não estão prontos para verem o continente Africano numa perspectiva de emancipação ao ocidente e tudo que foi imposto através da violência colonial. As pessoas brancas não querem, e nem desejam, ver o povo negro mostrando toda a sua beleza de uma maneira única, futurista, revivendo os valores ancestrais e em conexão com a terra que nos trouxe à vida.

    Ótima matéria!

  3. Janaina disse:

    Primeiramente é preciso destacar que Lilia é pesquisadora, antropóloga e historiadora sobre questões raciais…não uma mera colunista….depois os ofendidos deveriam analisar bem o que ela diz. Todo meu apoio e respeito a Lilia.

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