Primeira bailarina trans do Municipal, Márcia Dailyn volta consagrada

Retrato da atriz e bailarina Marcia Dailyn em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, onde se formou e foi a primeira bailarina trans da história da instituição, para onde retorna consagrada nesta segunda com a peça “Mississipi”, do Satyros – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

Márcia Dailyn está muito emocionada. A primeira bailarina transexual da história da Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo volta como atriz consagrada ao palco onde foi forjada. Retorna para o lugar icônico das artes brasileiras onde desde pequena sonhou estar.

Márcia apresentou, nesta segunda (26), com a Cia. de Teatro Os Satyros, o espetáculo “Missisipi”, de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, em sessão popular comemorativa dos 30 anos da companhia com ingressos a R$ 5.

A convite do Blog do Arcanjo no UOL, Márcia visitou o Municipal na companhia do fotógrafo Bruno Poletti para este especial de entrevista e ensaio. Um reencontro repleto de recordações de uma menina nascida em Jales, no interior de São Paulo, em pleno Dia dos Pais de 1978: 13 de agosto. “Fui um presente para meu pai’, resume a festa que o eletricista Lau fez em seu nascimento.

Dezoito anos depois, foram oito horas de ônibus de Jales até São Paulo, em busca do sonho de ser artista. Leonina resoluta, Márcia jamais pensou em desistir. O trabalho de corpo herdou da mãe, Selma, “uma professora de ginástica da década de 1980”, como ela define, fazendo a gente imaginar uma Jane Fonda de Jales. Também herdou de berço “o alicerce da vida: caráter, dignidade, amor ao estudo”.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

A responsabilidade veio cedo na vida de Márcia: cuidava da irmã Jaqueline, que nasceu quando ela já tinha 11 anos. “Amava cuidar da minha princesa, na época gostava de assistir à novela ‘Tieta’, de Aguinaldo Silva, uma época de ouro”, define.

Naquela época, Márcia já sabia que era uma mulher. E viveu todos os conflitos dessa descoberta. De cara, entendeu que São Paulo acolheria melhor seu sonho de ser artista e sua identidade de gênero. “Saí de Jales aos 18 anos para estudar ballet clássico no Municipal de São Paulo”, conta.

O ano era 1996 e Márcia desembarcava de um velho ônibus na maior metrópole do país. Uma mistura de medo e frenesi invadia seu corpo. Mas, não havia espaço para volta: “Foi difícil, sim. Morei na casa dos outros de favor, mas nunca desisti. Fui atrás”.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

Até que conseguiu a proeza de ser a primeira bailarina transexual do mais tradicional palco do Brasil. Enfrentou de cabeça erguida o preconceito de alguns nas audições, mas também conquistou apoios fundamentais, como o de Lúcia Camargo, então diretora do Theatro Municipal de São Paulo.

“A Lúcia Camargo sempre me defendeu lá dentro do Municipal. Ela me disse: você quer ser bailarina? Pois então vai ser, sim! Há poucas semanas, tive a felicidade de ela ir me assistir na peça ‘Entrevista com Phedra’, que eu faço no Satyros na praça Roosevelt, na qual tenho a honra de interpretar minha amiga e diva histórica Phedra D. Córdoba. Foi uma sessão de muita emoção para mim, um turbilhão de coisas se passaram na minha cabeça. A Lúcia é muito importante na minha trajetória”, conta.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOLRetrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

Como já revelou, Márcia Dailyn também protagoniza o espetáculo “Entrevista com Phedra”, no qual contracena com o ator Raphael Garcia sob direção de Robson Catalunha e Juan Manuel Tellategui em texto de estreia na dramaturgia de Miguel Arcanjo Prado, autor desta reportagem especial. “É um espetáculo que mexe muito comigo, só tenho a agradecer”, resume.

De volta à juventude no Municipal, Márcia lembra que um dia, por conta do preconceito de algumas colegas bailarinas, saiu magoada de uma audição. Foi quando conheceu a diva, bailarina e atriz cubana Phedra D. Córdoba (1938-2016), que lhe deu um precioso conselho.

“Phedra era a grande dama cubana do teatro brasileiro e também era transexual. Ela me deu força para fazer audição para entrar no Cuballet. E eu entrei. Hoje, nestas voltas inimagináveis da vida, faço a peça em homenagem a ela, ‘Entrevista com Phedra’, com muito orgulho. E herdei sei título Diva da Praça Roosevelt. Na semana passada, o Aguinaldo Silva, autor da novela ‘Tieta’, que eu via quando criança, veio nos assistir e me emocionou muito com as palavras generosas que ele me falou após aplaudir de pé a peça. Chegou para mim dizendo: ‘Menina, o que é você no palco?'”, conta Márcia, repleta de felicidade.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

“No Municipal, vivi momentos únicos, como a passagem do Ballet da Ópera de Paris aqui, em 1998, e também do Ballet Kirov, da Rússia. Fiz aulas, participei de congressos e de vários balés clássicos como ‘O Quebra Nozes’ e ‘O Adágio da Rosa , com a Orquestra Sinfônica, dancei ‘La Bayaère, que eu amo, a menina pobre que vira princesa que eu fantasiava ser”, recorda.

Mesmo enfrentando pessoas mesquinhas que a perseguiram por sua condição ao longo da carreira, o empenho e a dedicação da artista logo foram reconhecidos. Márcia Dailyn foi eleita por três anos consecutivos pela Secretaria de Cultura a melhor bailarina de São Paulo.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

A dança abriu caminho natural para a atuação, quando ela resolveu estudar no Teatro-Escola Macunaíma para se aperfeiçoar com as palavras. “Ser atriz me completa, complementa a bailarina que sou. Sei dançar e atuar, e fazer teatro não é fácil, mas sempre me dediquei, porque tudo que eu queria era ser bailarina e atriz, como hoje eu sou”, afirma. “Nesse processo, sou muito grata às pessoas que não fecharam as portas para mim”, faz questão de dizer. “Passei por vários mestres da dança como Ilara Lopes , Heleninha Verner, Maestro Ordinis , Jorge Penha , Dalal Achcar”, enumera.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

Questionada sobre como se sentirá na noite desta segunda, quando subirá ao palco do Municipal outra vez, já como bailarina e atriz consagrada no cenário artístico paulistano e nacional, Márcia é arrebatada por forte emoção, que lhe faz balbuciar a resposta.

“Voltar ao palco do Municipal me emociona muito, Miguelzinho. Eu nasci ali… As colunas, o cheiro da coxia, os espelhos do camarim… Tudo eu vivi aqui. Será muito forte fazer ‘Mississipi’ aqui com Os Satyros! Estou em lágrimas nos olhos, você está vendo! Eu era uma menina e hoje, aos 41, estou de volta. Eu queria ser alguém, hoje vejo toda a minha vida ao retornar ao Municipal, vejo que fiz tudo por amor e faria novamente”, reflete.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

“Retorno ao Municipal com uma grande companhia de teatro que me repaginou as 39 anos. Que me fez voltar para o teatro e que é uma das mais tradicionais do Brasil, Os Satyros, que tem 30 anos de trajetória. Meu eterno carinho e amor a Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, que me deram essa oportunidade e me concederam o título de Diva da Praça Roosevelt, que pertenceu a Phedra D. Córdoba”, relembra.

“O Municipal é minha vida. Ali nasci Márcia Dailyn e hoje sou respeitada. Foram anos de luta. Sou a primeira bailarina transexual nesta centenária instituição. No Municipal os holofotes se acenderam para mim e ainda vivem dentro de mim. Ali quero morrer”.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

“Hoje, entrando aqui no Municipal, não como aluna, mas como uma artista já estabelecida, com o Bruno Poletti, para fazer essas fotos, todos os funcionários vieram me cumprimentar. É isso que eu carrego para a minha vida. Tantas pessoas me abriram portas, tenho profunda gratidão. E neste caminho, um apoio também foi crucial: o do meu amigo e irmão Walério Araújo. O Walério me ajudou muito. Além de um grande estilista, que o faz ser disputado pelas maiores estrelas desse país, ele sempre foi generoso comigo, me vestindo de modo impecável, inclusive em ‘Entrevista com Phedra’. Walério é  um irmão para mim”, define.

“A vida em São Paulo me deu coisa muitas boas. Sou musa do maior bloco de Carnaval da cidade, que este ano completou dez anos, o Acadêmicos do Baixo Augusta. Tenho outro grande amigo que me apoia muito, que é o Caio Ribeiro. Trabalho na maior empresa de entretenimento da diversidade do Brasil, que é a The Week, e também na farmácia do Laboratório de Manipulação Buenos Ayres, onde sou muito querida, respeitada e valorizada por todos. Sou ainda Musa do Bar da Dona Onça, que é minha casa. A Janaína Rueda tem um carinho enorme por mim. Muitas vezes quando não tinha emprego, não estava no Satyros nem no Baixo Augusta, numa época difícil, sem nada para me apresentar, ela sempre me deixava jantar lá de graça com o maior carinho”, emociona-se.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

“Então, hoje, quando o diretor artístico do Theatro Municipal Hugo Possolo me traz até aqui, que sou tratada com todo o carinho pelo assessora do Municipal, Vanessa Beltrão, e vejo os funcionários do Municipal olharem para mim com orgulho e dizer ‘ela estudou ballet aqui’, me faz ficar muito emocionada”, reflete.

“Tudo isso me faz lembrar do amor do meu gato Mustafá, meu fiel companheiro de 12 anos… E me faz voltar no pensamento a Jales, onde minha mãe, Selma, vendia coxinhas para eu não desistir. Como eu amo minha mãe! E quando eu me formei bailarina no Municipal e mostrei o registro para meu pai, ele fez silêncio e de repente lhe brotaram lágrimas nos olhos. Foi quando meu pai me falou: ‘Eu amo você, minha filha, eu sabia que você iria conseguir'”, finaliza, com lágrimas escorrendo também em seus olhos, uma emocionada Márcia Dailyn.

Por Miguel Arcanjo Prado
Retratos de Bruno Poletti

Márcia Dailyn veste Acervo Pessoal. Produção: Caio Ribeiro.

Agradecimentos: Cia de Teatro Os Satyros, Hugo Possolo, Vanessa Beltrão e equipe Theatro Municipal de São Paulo, Walério Araújo, Ivam Cabral, Rodolfo García Vázquez, Robson Catalunha, Juan Manuel Tellategui, Diego Ribeiro, Gustavo Ferreira, Silvio Eduardo, Bar da Dona Onça, A casa do Porco, Hot Pork, Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, The Week e Laboratório Buenos Ayres.

Retrato da atriz e bailarina Márcia Dailyn no Theatro Municipal de São Paulo – Foto: Bruno Poletti – Blog do @miguel.arcanjo UOL

Please follow and like us: