Crítica: Satyros criam vigorosa metáfora do Brasil atual em Mississipi
Satyros celebram 30 anos com metáfora do Brasil nos palcos: cena da peça “Mississipi” com Márcia Dailyn, Ju Alonso, Henrique Mello e Junior Mazine – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Um dos principais grupos cênicos do Brasil, a Cia. de Teatro Os Satyros encena “Mississipi” para celebrar seus 30 anos e criar uma alegoria potente do Brasil de hoje. A obra pode ser vista em São Paulo até 26 de maio, sexta e sábado, 21h, domingo, 18h, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, metrô Higienópolis-Mackenzie) com entrada a R$ 40 a inteira e R$ 20 a meia.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Mississipi” ✪✪✪✪✪
Avaliação: Ótimo
A Cia. de Teatro Os Satyros sempre buscou dialogar de forma profunda com a sociedade ao seu redor e com o tempo presente. Não é diferente na peça que comemora suas três décadas de trajetória, “Mississipi”, na qual a trupe faz sua catarse diante do Brasil que o rodeia.
Na encenação, o grupo sediado na praça Roosevelt, centro paulistano, volta a falar em sua dramaturgia deste lugar fundamental em sua história há 20 anos e que foi fortemente modificado por sua presença — antes um espaço esquecido e perigoso, após a chegada do Satyros a Roosevelt virou epicentro artístico e boêmio da capital, contribuindo para a revitalização do Baixo Augusta.
E, o mais importante, ao dialogar com a realidade da Roosevelt, Os Satyros criam uma vigorosa metáfora do Brasil atual, tornando universal seu universo particular.
O texto do espetáculo, repleto de dor, poesia e, sobretudo, vida, é de autoria dos fundadores do grupo, Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, dupla fundamental na história contemporânea do teatro brasileiro e espécie de locomotiva do mesmo.
Para lavar a alma: Ivam Cabral canta “Manhas de Setembro”, da Vanusa, em “Mississipi”, canção que está ligada ao surgimento do festival Satyrianas – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Ivam assume o protagonista, Mississipi, habitante da praça e cujo nome foi um delírio dos pais em homenagem ao interiorano estado norte-americano. Trata-se de uma espécie de narrador desolado com a vida em declínio ao seu redor, saudoso de uma humanidade que se esvai de forma rápida e dolorosa, sem com que ele possa muito fazer.
Ivam imprime muito bem ao personagem essa mescla de sentimentos que o tornam o anti-herói dessa história.
E não abre mão da poesia, como quando se junta ao grupo para cantar com o público “Manhãs de Setembro”, canção simples e tocante de Vanusa que inspirou a Satyrianas, hoje um dos maiores festivais artísticos do país. Aliás, interação com os espectadores faz parte da história do Satyros e não poderia faltar neste espetáculo comemorativo.
O ator Felipe Moretti em “Mississipi”: encenação crua e poética do Satyros para os problemas da praça Roosevelt, onde tem sede há 20 anos, e que espelha o Brasil – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Já Rodolfo, como sempre, está no comando da sensível direção do espetáculo — assistido por Silvio Eduardo. Ele cria uma encenação coesa, ao mesmo tempo crua e poética, repleta de impacto, na qual passeia, como é de seu feitio, por matizes e correntes teatrais distintas, construindo um todo diverso e coerente, no qual consegue extrair o melhor de seu elenco e homenageia a história do próprio grupo.
No espectro de criação artística, cabe menção ao impactante design de aparência de Adriana Vaz e Rogério Romualdo, bem como no esmero musical de Marcello Amalfi na trilha e dramaturgia sonora, que contou com milagrosa preparação vocal de Dan Ricca e Isis Nascimento.
A produção sob comando dos incansáveis Silvio Eduardo e Diego Ribeiro, assistidos pela fiel Maiara Cicutt, ainda traz vídeos sutis de Henrique Mello, figurinos surrados, mas inventivos, de Adriana Vaz e Rogério Romualdo e costurados por Cleide Niwa, cenografia soturna de Murillo Carraro, iluminação de Flavio Duarte e máscaras lisérgicas de Eduardo Chagas.
A rua é logo ali: Felipe Moretti, Ivam Cabral e Eduardo Chagas fazem pessoas em situação de rua em “Mississipi”, peça do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
O grande conflito do espetáculo se dá, sobretudo, entre os moradores de classe média da praça e as pessoas em situação de rua que nela habitam — ambos atraídos por sua valorização e movimentação trazida pelos teatros e bares.
Cria-se, assim, confronto político-ideológico fomentado pelo ódio, dos ricos pelos pobres, é claro, e com o uso de um discurso moralista, mas de fundo criminoso-exterminador.
Gustavo Ferreira interpreta o grande antagonista de “Mississipi”, peça do Satyros, em um de seus melhores personagens nos palcos – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Quem representa o grande antagonista alegórico da peça com intensidade e entrega desmedida é Gustavo Ferreira, em um de seus melhores momentos no Satyros.
Seu personagem incorpora o maquiavelismo de um pensamento higienista e classista que tanto vemos por aí e que nos espreita diariamente, cada vez mais entranhado em nossas instituições (já não tão) democráticas.
A ferocidade com que Gustavo Ferreira diz seu texto como rajadas de trovões é a mesma que vibra negativamente nas redes sociais e que já demonstrou sua força manipulativa nas últimas eleições e no cotidiano político nacional.
Personagens com discursos impactantes: Eduardo Chagas e Julia Bobrow em cena de “Mississipi” – Foto: Virginia Benevenuto – Divulgação Festival de Curitiba – Blog do Arcanjo – UOL
Entre os personagens em situação de rua, dois se destacam por terem discursos perspicazes, que funcionam como um soco no estômago dado pelos dramaturgos no público e na própria classe artística, tamanha a clareza com que são apresentados nas bocas de Eduardo Chagas e Julia Bobrow.
Eduardo Chagas é um excelente ator. Daqueles capazes de dizer até bula de remédio com a maior verdade do mundo em atuação stanislavskiana irrepreensível. E, diante do excelente monólogo com que é presenteado em “Mississipi”, ele arrebata os espectadores com sua desconcertante mensagem reveladora das mesquinharias humanas.
Sua fala sobre os habitantes das ruas serve de paralelo aos embates internos no desunido campo progressista-artístico. Desunião esta que já deixou a classe artística sob ameaça de extinção nestes novos tempos. Afinal, muitos por aí parecem ter se esquecido que “barata não fode com barata”, como implora seu personagem.
Já Julia Bobrow, em atuação intensa e arrebatadora, funciona como um desconcertante farol de sanidade submerso na loucura. Enquanto sua personagem brada contra o binarismo social, lembra, de forma tresloucada e assustadoramente lúcida, que o mundo que foge do sim/não é o que verdadeiramente importa.
É como se a personagem de Julia dissesse que precisamos emergir do mergulho ignorante no pensamento dual e recuperarmos a autonomia do pensamento que abraça a diversidade, tão bela em sua multiplicidade de possibilidades.
Lição de amor ao próximo em uma linda amizade: Márcia Dailyn e Ju Alonso em cena de “Mississipi”, do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Outra dupla das ruas vai por um outro caminho de registro de atuação, já mais próximo do bufônico, provocando um riso no público que alivia tanto peso: Princesa, interpretada por Márcia Dailyn, e Vanglória, papel de Ju Alonso, representam a união das diferenças em uma amizade profunda, onde o cuidado mútuo existe de fato.
Márcia, com sua personagem de caretas exageradas, presta tributo a Phedra D. Córdoba (1938-2016), grande atriz transexual cubana e diva da praça Roosevelt e do Satyros — títulos herdados pela própria Márcia. Esta constrói uma personagem imbuída da doçura de quem apenas deseja sentir os bons aromas da vida.
Ju Alonso, por sua vez, deixa florescer sua forte veia cômica desejosa de romper a quarta parede, terreno no qual transita com conforto. Esta traz uma lição fundamental a todos nós brasileiros, povo com grande incapacidade de simplesmente seguir as regras do jogo, burladas a todo instante por nosso “jeitinho”. Sua personagem não se cansa de se perguntar, sabiamente: por que não seguimos as placas?
Márcia Dailyn, Ju Alonso e Ingrid Soares em “Mississipi”: humanidade para os habitantes das ruas da metrópole- Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Ainda entre os habitantes das ruas há espaço para um ser que, mesmo jogado à margem social, é capaz de, romanticamente, abrir mão do dinheiro por conta de um amor, papel de Felipe Moretti. Na construção de seu personagem, de forma entregue, ele também aposta em um registro bufônico, mas digno e humano.
Já Ingrid Soares faz mergulho visceral em sua viciada em crack performativa, que busca deixar o horror do vício na tentativa de recuperar sua dignidade, comovendo a todos.
Do lado de lá, nos altos dos edifícios que rodeiam a praça, vivem os outros personagens, imersos em seus cotidianos vazios e solitários, desejosos do calor que vem das ruas como forma de, quem sabe, curar momentaneamente suas friezas.
Musa do cinema em grande momento como atriz dramática: a atriz Nicole Puzzi em cena de “Mississipi”, do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Maresias é interpretada de forma potente por Nicole Puzzi, musa do cinema brasileiro que encontrou recentemente no Satyros palco propício para mostrar seu talento dramático.
Sua personagem é uma mulher e atriz que conheceu os sabores da fama, mas que não foram capazes de atenuar a sua dor de existir, sobretudo após perder o homem de sua vida.
A personagem vai definhando ao longo da obra até o fim que remete à história de uma conhecida atriz televisiva que deixou-se cair do prédio diante de uma praça paulistana em 2006.
Robson Catalunha e Fabio Penna: encontro potente de seus personagens mistura vingança e desejo em “Mississipi”, peça do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Fabio Penna, por sua vez, interpreta com candura e apetite um gerente de marketing mineiro, homossexual e solitário na cidade grande, que resolve morar em um grande apartamento na praça repleto de arte nas paredes.
E é na praça onde o personagem busca satisfazer seus desejos obscuros em caminhadas notívagas e sem limites.
Robson Catalunha, outro ator potente do Satyros e com currículo internacional ao lado do diretor estadunidense Bob Wilson, imprime a seu jovem garoto de programa uma mistura de antigos ressentimentos e desejo constante de vingança.
O cruzamento de seu personagem com o velho gerente mineiro é crucial e altamente perigoso para ambos.
Juventude ególatra que esqueceu a beleza do outro: Henrique Mello em cena da peça “Mississipi”, do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Ainda há no campo dos personagens de classe média os dois jovens interpretados por Henrique Mello, o médico entediado bem nascido, e Junior Mazine, o lutador desmiolado filho de uma família abastada.
São representantes de uma juventude distópica e perdida na própria vaidade, que os faz enxergar o outro como lixo.
Fuga de velhos estereótipos étnicos-sociais: o ator Junior Mazine em cena da peça “Mississipi” – – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Uma observação: a escalação de ambos atores de perfis étnicos distintos para personagens similares e pertencentes à mesma classe dominante é uma interessante proposta dos Satyros contra estereótipos étnicos-sociais nos palcos nacionais.
Sabrina Denobile em cena de “Mississipi”, do Satyros – Foto: Andre Stefano – Divulgação Satyros – Blog do @miguel.arcanjo – UOL
Para finalizar o espectro de personagens de “Mississipi”, há ainda há a bela mulher imersa em uma alma dolorida e que tenta preencher seu vazio com o sexo fugaz e repleto de riscos, personagem brilhantemente interpretada por Sabrina Denobile, dona de canto doce e triste.
Sabrina vem crescendo a cada peça do Satyros, tornando-se cada vez mais vigorosa e revelando novas matizes sutis e elegantes que a fazem crescer em cena.
Diante de tantos panoramas e sentimentos, “Mississipi” traça uma metáfora grandiloquente do Brasil contemporâneo, com seus dilemas aprisionados.
Assistir a “Mississipi” é como enxergar o Satyros diante de um muro odioso no qual o Brasil aportou e que vai de encontro justamente a tudo no qual o grupo apostou ao longo de suas três décadas de trajetória.
Ao humanizar as pessoas dos prédios e as pessoas das ruas, tratando de igual forma suas misérias, paixões, sonhos, desejos e dissabores, é como se o teatro de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez nos dissesse para sairmos da nossa vaidade oca e tentarmos nos reconciliarmos outra vez com o outro, que nada mais é do que um espelho de nós mesmos.