Crítica: Eletrizante, Avesso, o Musical reflete guerra política no Brasil

Com pegada jovem e roqueira, “Avesso, o Musical” mostra um grupo de jovens universitários que sequestram um professor no campus: enfrentamento político atual refletido no palco – Foto: André Pottes/Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

“Avesso, o Musical” é uma montagem eletrizante que leva para um campus universitário os conflitos políticos do Brasil de hoje com um professor sequestrado pelos alunos. Com abordagem às pautas identitárias, o espetáculo pode ser visto sexta e sábado, 21h, e domingo, 19h, até 24 de fevereiro, no Teatro Nair Bello, no shopping Frei Caneca, em São Paulo, com ingresso a R$ 60 a inteira e R$ 30 a meia.

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Avesso, o Musical” ✪✪✪✪
Avaliação: Muito Bom

Nas últimas duas décadas o teatro musical cresceu no Brasil, sobretudo na cidade de São Paulo, num primeiro momento com versões nacionais de espetáculos da Broadway. Após conquistar público farto, foram surgindo tentativas nacionais de criação de uma dramaturgia própria, baseada em histórias brasileiras.

Nesta seara, se destaca “Avesso, o Musical”, sobretudo pela coragem e frescor em abordar no palco os atuais enfrentamentos políticos do país em uma encenação eletrizante, envolvente e, sobretudo, jovem e roqueira. Realmente, é um espetáculo imperdível pela proposta que destoa do usual visto nos palcos.

Em cena, há o embate ideológico e o confronto de gerações. Tudo se passa em uma universidade pública na qual um professor aliado à reitoria é sequestrado por alunos do movimento estudantil desconformes com os rumos tomados pelos dirigentes do campus.

O diretor e idealizador Hudson Glauber constrói uma encenação ágil, na qual a ação se destaca, sobretudo pela movimentação intensa dos artistas habilmente desenhada por André Capuano e as convincentes cenas de luta coreografadas com esmero pelo dublê Cristiano Fortes.

A sensação para quem assiste é estar em um filme que mistura thriller e policial, deixando todos com vontade de saber onde aquela história irá terminar. As sensações são aguçadas pela excelência no som, em 5.1 canais — sob comando de Eric Ribeiro Christani e Alessandro Aoyama —, o que deixa a experiência sensorial sonora neste espetáculo equivalente à de boas salas de cinema.

Letícia Spanghero e Vanessa Goulartt em cena de “Avesso, o Musical”, em cartaz no Teatro Nair Bello, em SP – Foto: Francisco Junior – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Musical aborda pautas identitárias

A dramaturgia de Daniel Torrieri Baldi e Maria Elisa Barredo, com colaboração de Gustavo Amaral, é folhetinesca e conta com o ritmo ágil de uma boa série de ação como “How to Get Away with Murder” da Netflix.

De forma engenhosa, os dramaturgos condensam nas falas de seus personagens boa parte das pautas e enfrentamentos identitários do Brasil contemporâneo, que dividiu aqueles que antes estavam do mesmo lado progressista do jogo político, dando à peça o frescor do presente e o caráter de documentário cênico dos nossos desastrados tempos.

Em certos momentos, como quando a obra aborda o racismo — e o colorismo —, a dramaturgia toca fissuras sociais polêmicas, mas discutir o tema no palco em um musical já é um considerável avanço. O texto ainda aborda outras pautas recentes, como questões de gênero e o novo feminismo.

No elenco, altamente presente em cena, a começar pelos altos níveis de decibéis, Jair Assumpção imprime sisudez e desprezo pelos ideais da juventude ao seu professor sequestrado, conforme com o sistema e representante de uma visão de mundo já ultrapassada, mas que recentemente conseguiu retomar o poder político nacional.

No grupo de alunos, Vanessa Goulartt se destaca pela intensidade com que cria sua líder estudantil, uma jovem bitolada pela cartilha revolucionária tirada dos livros (ou xerox de capítulos?), mas colocados em prática de forma desastrosa por ela e seu grupo.

Neste time estão André Pottes, Gabriel Vaccaro, Guh Rezende, Leticia Spanghero, Marco Azevedo, Priscilla Sampaio e Vitória Mori, todos mergulhando com vontade em seus personagens e respectivos conflitos, que, mesmo que de algum modo estereotipado, o que é comum no teatro musical, acabam representando realmente a atual juventude universitária, sobretudo a das universidades públicas.

Outro destaque são as músicas da trilha sonora original composta por Thiago Gimenes, que vai do rock ao rap e nos recorda em muitos momentos “Rent”, demonstrando que é possível, sim, criar um musical completo, com libreto e música, tal qual a Broadway, mas com a nossa cara e nossos temas.

Chico Spinosa criou um vigoroso cenário de planos variados, que permite a movimentação intensa dos artistas, enfatizando a confusão daquele momento que os personagens vivem, reforçada pela luz presente de Rodrio Alves ‘Salsicha’.

“Avesso, o Musical” merece nossos aplausos pela coragem e inventividade para fazer o público refletir sobre como o Brasil se tornou esse lugar marcado pelo ódio de todos os lados e onde os enfrentamentos são pautados não pelo diálogo real, mas pela violência verbal ou até mesmo física. Sem abrir mão do entretenimento de seu público, o espetáculo demonstra que essa falta de empatia com o outro, o diferente, nos faz mergulhar mais profundamente no caos.

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