A Porta da Frente revela ignorância do ódio com Miriam Mehler e Sandra Pêra

Sandra Pêra e Miriam Mehler estão em A Porta da Frente, peça que faz suas últimas sessões no Teatro Renaissance, em SP – Foto: Caio Gallucci – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

O espetáculo “A Porta da Frente” faz suas últimas sessões neste fim de semana no Teatro Renaissance, em São Paulo. Ele marca não só uma discussão importante sobre o ódio atual, fruto da ignorância e que gera a violência, como também traz o encontro entre duas grandes atrizes como mãe e filha: Miriam Mehler e Sandra Pêra.

Aos 83 anos, Miriam Mehler é parte da história do teatro brasileiro e recebeu homenagem no último Prêmio Aplauso Brasil.

“Não paro de trabalhar. Estou muito feliz em fazer esta peça, com uma personagem tão interessante”, fala a atriz, que interpreta a avó Marilu, que encara a vida de uma forma mais leve diante de uma família pesada.

Para Miriam, que no primeiro semestre fez “Romeu e Rulieta 80” com Renato Borghi, não há tempo ruim quando o assunto é teatro.

“Eu fico louca para que chegue o dia de fazer a peça. Os problemas existem, lá fora está tudo difícil”, pondera.

“Do Brasil, então, é melhor nem falar. Mas o teatro tem essa magia de construir um personagem, sonhar. Se você não perde o sonho, você permanece viva e com uma certa esperança. Sonhar é uma coisa maravilhosa”, fala a atriz.

Greta Antoine, Miriam Mehler, Roney Facchini, Sandra Pêra e Bruno Sigrist estão em A Porta da Frente, peça de Julia Spadaccini sob direção de Marcelo Várzea – Foto: Caio Galucci – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Já Sandra Pêra, além de irmã de um mito dos palcos brasileiros, Marília Pêra, é também outra grande atriz, o que fica evidente na montagem.

Azeitada na vida, diz que não aceita más energias. “Eu sopro os maus pensamentos. Vem notícia ruim e eu viro para o lado. É um jeito de eu atrair coisas boas, tirar a nuvem ruim de perto”, explica.

Diante do Brasil sonhado por sua geração dos anos 1970, ela diz ficar assustada com o que vê neste turbulento 2018.

“As coisas estão caminhando tanto para trás que penso que daqui a pouco vamos pegar o telefone e esperar dar o sinal para poder ligar. Eu acho uma tristeza… O Brasil está uma tristeza, e o Rio de Janeiro está deprimido, jogado, enrolado em um lençol. Queria dizer para você que tenho esperança nessas eleições, mas não acredito mais em política”, confessa, em conversa no camarim com o Blog do Arcanjo no UOL.

Com atuação precisa e delicada, Fabiano Medeiros se destaca na pele de um vizinho crossdresser na peça A Porta da Frente – Foto: Caio Galucci – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Falando da peça, nela Sandra vive Lenita, uma mulher atormentada depois que o marido (Roney Facchini) passa a ter aulas de canto com um novo vizinho (Fabiano Medeiros) adepto do cressdresser, ou seja, que se veste como mulher. A peça ainda tem no elenco Greta Antoine e Bruno Sigrist.

“Li a história da Julia Spadaccini e já visualizei tudo”, conta Sandra. “Ela está em uma família meio triste, vida sem graça, na rotina, filhos grandes, mas dependentes. Representa uma caretice que é geral. O preconceito é comum às pessoas. Por mais que hoje não sejamos mais preconceituosos em relação a alguma coisa, em algum momento todos já tivemos algum tipo de preconceito”, aponta, antes de ensinar.

“A gente tem de vencer os preconceitos, as coisas que nos ensinam”, discursa. “O vizinho da porta da frente traz uma grande mudança e também desencadeia uma tragédia por conta do preconceito presente naquela família”, avisa.

Precursora do pop brasileiro, Sandra fez parte da inesquecível banda feminina As Frenéticas. Enquanto atua em São Paulo, no Rio o musical “O Frenético Dancin’ Days” lembra essa história.

“Nelsinho [Motta] escreveu esse musical com a Patrícia Andrade, ele é da família, foi casado com a Marília e é pai das minhas sobrinhas, então está tudo em casa”, diz.

“Vivi o Dancin’ Days. Era minha casa. Essa história que foi em 1976 ainda está aqui do lado para mim. Esses anos se passaram muito rápido. A minha filha, Amora Pêra, que é filha minha com o Gonzaguinha, não tinha nem nascido na época do Dancin’ Days e hoje está com 37 anos”, conta. “Nunca deixei a criança e a jovem ocuparem um espaço dentro de mim”, conclui.

Fabiano Medeiros e Roney Facchini: duas grandes atuações em A Porta da Frente, que faz últimas sessões no Teatro Renaissance – Foto: Caio Galucci – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Crítica: A Porta da Frente revela a ignorância do ódio

O preconceito caminha junto da ignorância. Essa é a constatação de quem assiste ao ótimo texto escrito por Julia Spadaccini em “A Porta da Frente”.

A montagem sob direção segura e propositiva de Marcelo Várzea ganha ainda mais profundidade diante do Brasil em ebulição às vésperas de uma eleição que até o momento vai sendo liderada pelo discurso do ódio.

A obra constrói um cotidiano de uma família “perfeita e tradicional”, daquelas que, nas aparências tudo é mar de rosas, mas, debaixo do tapete, guarda segredos e desejos inconfessáveis.

A grande chave reveladora de tudo isso é o novo vizinho, que se veste de mulher, adepto do crossdresser.

Isso desestabiliza aquele mundo de falsas verdades moribundas construídas e faz eclodir uma violência reprimida contra o diferente.

A obra traz grandes atuações de Miriam Mehler, na pele da avó desmemoriada e que os anos vividos ensinaram a ser mais tolerante, e de Sandra Pêra, em uma construção minuciosa da dona de casa neurótica, que desconfia do marido com a vizinha travestida enquanto busca pequenos prazeres no mundo digital.

Outros dois atores se destacam: Roney Facchini, sempre seguro e capaz de aliviar com seu espírito de comediante mesmo os dramas mais intensos, e Fabiano Medeiros, na pele do vizinho que envolve em névoa a diferença entre masculino e feminino, desestabilizando o mundo binário ao seu redor, em construção delicada e repleta de sensibilidade.

Completam o afinado elenco Greta Antoine e Bruno Sigrist.

Na parte técnica, merecem menção o cenário inventivo e funcional de Camila Schmidt, além da luz sempre propositiva de César Pivetti e Vânia Jaconis, e do figurino e visagismo sutis criados pelo ambivalente Leopolodo Pacheco. Uma grande reunião de talentos pela cuidadosa produção capitaneada por Célia Forte e Selma Morente.

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
A Porta da Frente ✪✪✪✪
Avaliação: Muito Bom
Quando: Sexta e sábado, 21h30, domingo, 18h. Até 30/9/2018.
Onde: Teatro Renaissance (al. Santos, 2233, São Paulo, tel.  11 3069.2286)
Quanto: R$ 70 (sexta e domingo) e R$ 80 (sábado)

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