“Desejo que amor vença o ódio no Brasil”, diz Jo Clifford: Entrevista de Quinta

Jo Clifford – Foto: Yaz Norris/Divulgação

A dramaturga escocesa Jo Clifford é autora da peça teatral mais atacada e censurada no Brasil dos últimos tempos: “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, aquela na qual a atriz travesti Renata Carvalho, sob direção da argentina Natalia Mallo, representa a figura de Cristo para levar uma mensagem de amor ao próximo.

Aos 68 anos, Jo está em Belo Horizonte, onde encena com ingressos esgotados nesta quinta (20) e sexta (21), às 19h, no Teatro Marília, a peça “Eve”. Nela, atua na dramaturgia escrita por ela e Chris Goode sob direção de Susan Worsfold e apresentação do Nathional Theatre of Scootland (Teatro Nacional da Escócia).

O espetáculo é destaque na programação do 14º FIT-BH (Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte), um dos principais eventos das artes cênicas do país desde 1994, que conta em 2018 com 30 espetáculos entre 13 e 23 de setembro.

Na obra, conta sua experiência de mulher transexual que teve de conviver com a angústia de se descobrir uma menina em um corpo de menino e ter de viver durante décadas atravessada por esse medo e repressão por ser quem era.

Em uma conversa exclusiva nesta Entrevista de 5ª do Blog do Arcanjo realizada no lobby do hotel Belo Horizonte Othon Palace, Jo falou não só da antiga e da nova peça, mas ainda comentou como enxerga as atuais eleições no Brasil.

Revelou que sente medo com o crescimento do discurso ultraconservador de extrema direita que lidera as pesquisas para a Presidência. E deu sua opinião sobre o pleito: “Eu desejo a vitória das forças progressistas, que o amor vença o ódio no Brasil”.

Ela ainda confessou o temor que sentiu quando sua peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” foi perseguida no Brasil e contou em primeira mão que pretende transformar o episódio de violência e de censura que a montagem sofreu no Festival de Inverno de Garanhuns neste ano em um novo espetáculo teatral. “Porque essa é uma história de heroísmo artístico que deve entrar para a história da dramaturgia teatral e ser representada ao longo da história”, declarou.

A nova obra celebrará os dez anos de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. “Após as sessões de ‘Eve’ em Belo Horizonte, vou para São Paulo, onde pretendo entrevistar a atriz Renata Carvalho, a diretora Natalia Mallo e a produtora Gabriela Gonçalves. Além disso, Natalia vai montar e adaptar outra peça minha, ‘Luz na Vila’, que será encenada em uma ocupação em São Paulo”, adiantou.

Leia com toda a calma do mundo.

Miguel Arcanjo Prado — Jo, eu te entrevistei dois anos atrás aqui mesmo no FIT-BH, quando você apresentou pela primeira vez no Brasil sua peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Lembro que falávamos sobre a onda conservadora que crescia no Brasil. Como é voltar ao nosso país agora, quando essa onda cresceu e neste momento o candidato líder na pesquisa para a Presidência um político que discursa contra mulheres, negros, gays e todos LGBTQ+?
Jo Clifford — Esse pobre homem odeia todo mundo e isso me dá muito medo. Se este indivíduo for eleito seria um desastre para o Brasil e para o mundo inteiro. Porque o Brasil é um país muito importante, neste momento de tão profunda crise no mundo, Brasil, com todas as suas riquezas… Talvez vocês brasileiros não se deem conta do quão importante é o seu país para o mundo. Porque vocês são o futuro, ou não. Vocês têm a capacidade de destruir o mundo inteiro se destruírem a Floresta da Amazônia, isso seria um desastre global. Então, a possibilidade de esse homem, cujo nome não vou dizer, ganhar está colocando tantas amigas e amigos meus em perigo direto e eu também. Porque se ele ganha no primeiro turno eu vou estar ainda aqui no Brasil. Vou ter de ir para a Embaixada… Sinceramente, não sei o que vai passar.

Miguel Arcanjo Prado — Você é uma artista que dialogou muito com o Brasil nos últimos anos. O que você deseja ao país neste momento tão crucial de sua história?
Jo Clifford — Eu desejo que as forças de amor, progressistas, vençam. E elas são muito forte. Há neste momento no seu país uma luta incrível de forças. E a força desse homem que não vamos nomear é, sim, forte. Mas as forças de amor, as forças de um desejo por um novo país, um país de Justiça, um país que respeite a natureza e o meio ambiente, um país que quer Justiça para todo mundo: um país antirracismo, um país que respeita os LGBTQ+s. O Brasil é um país incrível e é isso que me encanta, é um país ainda jovem e forte. A Europa já está muito velha e cansada. Então, eu desejo a vitória das forças progressistas, que o amor vença o ódio no Brasil.

Miguel Arcanjo Prado — Depois que você fez “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” no FIT-BH de 2016 sua obra ganhou montagem no Brasil logo na sequência, com a brasileira Renata Carvalho sob direção da argentina Natalia Mallo. A peça causou muita polêmica por aqui, chegou a ser censurada pela Justiça, foi vítima de violência em censura e violência no Festival de Inverno de Garanhuns, onde uma bomba chegou a explodir no local da apresentação, o que fez a Renata Carvalho e sua peça entrarem para a história do teatro brasileiro, tudo isso estará em livros de história daqui a cem anos. Como você viu tudo isso se passar lá da Escócia?
Jo Clifford — Eu tive muito medo. Estava muito ansiosa com tudo isso. Pela diretora Natalia Mallo, pela atriz Renata Carvalho, pela produtora Gabriela Gonçalves, que estavam se arriscando de uma maneira incrível para representar palavras que eu criei. Uma responsabilidade enorme que me dava medo, medo, medo! Mas, ao mesmo tempo, eu estou muito orgulhosa de haver escrito essas palavras. Elas têm uma força muito poderosa. A bomba que explodiu em Garanhuns foi o melhor dos cenários que um podia imaginar. Também sou tão orgulhosa de trabalhar com essas artistas com tanto heroísmo. Porque se trata de heroísmo. E eu vou escrever uma outra peça que descreve tudo isso que se passou em Garanhuns com “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Porque essa é uma história de heroísmo artístico que se deve entrar para a história da dramaturgia teatral e ser representada ao longo da história. Tudo isso foi muito importante e histórico.

Miguel Arcanjo Prado — Porque tudo que aconteceu foi muito perigoso.
Jo Clifford — Sim, eu estava rezando para que nada acontecesse. Porque eu tinha tanto medo, Miguel, mas enfim o que fez Natalia, Renata e eu é algo necessário. São coisas que temos de fazer para que as coisas progressem.

Miguel Arcanjo Prado — E essa sua nova peça, “Eve”? O que você quer dizer agora no Brasil neste fatídico 2018?
Jo Clifford — “Eve” é uma obra muito parecida e ao mesmo tempo muito diferente de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Eu conto a história de um menino de uma família ultraconvencional e muito conservadora dos anos 1950 que sabia que não era menino, ainda que tivesse um nome de menino e um corpo de menino. E a confusão do medo, da vergonha, do sofrimento dessa pessoa está na peça. E essa pessoa fui eu. E tudo isso foi algo fortíssimo, a sensação de ser sozinha. Não existia palavras para descrever quem eu era. Uma palavra como travesti, transexual, nada! Nada! Eu não podia compreender o que passava. E foi uma luta incrível de muitos anos. A vergonha me impediu como artista. Eu precisei de 35 anos para escrever uma peça de teatro, para encontrar minha voz. E depois levei outros 30 anos para descobrir minhas forças como atriz. Trata de uma história de sofrimento e trauma muito intensa. Mas eu venci, aqui estou, no palco, contando minha história. O que me interessa muito nessa história é expressar como é ser travesti. Essa palavra que não existe em inglês mas que descreve perfeitamente quem eu sou. Tive que vir ao Brasil para encontrar uma palavra para descrever quem eu sou [risos]. Quero mostrar essa travesti sem medo e de uma maneira muito humana. Comunicar essa realidade de forma que todo mundo possa compreender, simpatizar e dizer: uau, isso acontece de alguma forma comigo também!

Miguel Arcanjo Prado — É preciso humanizar travestis e trans?
Jo Clifford — Sim, humanizar! E faço isso de uma forma muito simples e amorosa.

Miguel Arcanjo Prado — Você ainda acha que o amor é mais forte que o ódio?
Jo Clifford — Sim! O amor! Eu lia as coisas horríveis que as pessoas diziam para a Renata Carvalho por ela ter feito “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” e me lembrava que há dez anos, quando eu comecei a fazer essa peça, as mesmas pessoas diziam as mesmas coisas para mim. E essas pessoas não são nada originais, são muito ignorantes, estão prisioneiras dentro de seu ódio. E o ódio faz as pessoas prisioneiras. Amor dá liberdade, inteligência. É preciso lembrar que a humanidade progressou, avançou e conseguimos estar em um lugar melhor. Não podemos voltar atrás, àquela situação miserável de antes. O amor é mais forte que o ódio, mesmo que em alguns momentos não pareça.

Por Miguel Arcanjo Prado
Enviado especial a Belo Horizonte*

*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do 14º FIT-BH.

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