Crítica: Em Transex, Nicole Puzzi supera preconceito com pornochanchada
Durante muito tempo, por preguiça ou maldade, Nicole Puzzi teve seu nome associado apenas à pornochanchada, alcunha preconceituosa cunhada por uma crítica elitista para o cinema que resistiu no Brasil, com sucesso de público, durante a ditadura militar.
Como bem mostra o documentário “Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava”, lançado recentemente pela cineasta Fernanda Pessoa, a “pornochanchada” era muito mais do que um apelido. Era cinema. Cinema este que retratou importantes aspectos da sociedade brasileira durante tempos de chumbo e de censura feroz do qual foi vítima.
Por isso, é salutar ver Nicole Puzzi ganhar um dos principais palcos da cidade de São Paulo a convite de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, no posto de coprotagonista ao lado de Márcia Dailyn na remontagem da Cia. de Teatro Os Satyros para seu clássico de 2004 “Transex”, com texto e direção de Rodolfo.
A peça foi pioneira ao apresentar uma história protagonizada por personagens transexuais naquele palco que começava a fervilhar de arte a praça Roosevelt, que nunca mais seria a mesma após o grupo resolver instalar sua sede ali, antes antro perigoso e hoje efervescente point da metrópole.
A remontagem, é uma espécie de pré-homenagem aos 30 anos do Satyros, que serão celebrados com toda pompa em 2019, e ainda comemora os 80 anos que a diva cubana Phedra D. Córdoba teria completado neste 2018. A peça de García Vázquez apresenta um olhar à frente do seu tempo para a questão trans, hoje tão presente, de forma premonitória da realidade que já chegou, mesmo gerando ainda tanta resistência conservadora e violenta, o que é demonstrado também na reta final da peça.
Envolta em um bom banho pop, com direito a uma trilha sonora psicodélica concebida por Ivam Cabral e uma quente e kitsch cenografia de Dan Oliveira e Rafael Santos, que não deve nada aos coloridos cenários dos filmes do espanhol Pedro Almodóvar, a peça conta a história de Tereza, uma travesti que está apaixonada por um ET, mas que acaba por ser galanteada por seu professor de pintura, um homem trans.
Nova diva da praça Roosevelt no lugar de Phedra D. Córdoba, Márcia Dailyn encarna a personagem-protagonista com um misto de doçura e deboche. Se ainda esboça atuação frágil em seus monólogos, Márcia cresce como atriz justamente quando contracena com sua parceira de cena, Nicole Puzzi, que, como um seguro furacão, movimenta tudo ao seu redor.
Nicole é Marlene Bréa, uma ex-atriz do cinema feito na Boca do Lixo paulistana, espécie de alter-ego de si mesma. Inclusive, em alguns momentos de cena, a atriz valoriza com emoção real aqueles que construíram o cinema paulista dito “pornochanchada”, inclusive fazendo questão de mencionar os nomes resistente do passado que aparecem a cada sessão para ver, comovidos, o espetáculo.
Em grande performance — e ainda dona de um corpo escultural capaz de fazer suspirar todos os gêneros, mesmo que dizer isso hoje seja politicamente incorreto —, Nicole Puzzi demonstra na peça a grande atriz que é.
Atriz esta que a televisão brasileira deveria valorizar mais e não ficar com despeito por conta de um apelido maldoso que tentaram colar em sua figura. Afinal, nomes como Tony Ramos, Antonio Fagundes e Vera Fischer também atuaram na tal cinema desprezado pelos intelectuais de plantão, sem que isso tenha prejudicado suas carreiras televisivas.
Em “Transex”, Nicole Puzzi se desgruda da pecha da “pornochanchada” sem, contudo, cuspir no prato que comeu: muito pelo contrário, valoriza aquele cinema feito na raça, repleto de lascívia e de mensagens política subliminares, e que conquistava milhões de espectadores, coisa que certos críticos que odeiam o povo jamais toleraram.
E, não bastasse a ótima química entre as duas coprotagonistas, a obra do Satyros ainda guarda outros três trunfos.
O primeiro é a caraterização primorosa assinada por Cinthia Cardoso e Lenin Cattai, com direito à maquiagem exuberante de Henrique Mello de contribuição extra.
O segundo é a participação especial de convidados no papel de Phedra D. Córdoba, personagem que faz rápida (e geniosa) aparição no enredo, em uma homenagem póstuma que comove a todos e gera um frenesi interessante no elenco, diante do risco de uma performance diferente a cada sessão.
Leona Jhovs, Edy Star, Salete Campari, Paula Cohen, Thiago Mendonça, TchaKa, Cléo de Páris, Juan Manuel Tellategui e Laerte Késsimos foram alguns dos que encararam o gigante desafio de ser Phedra por um dia.
E o terceiro trunfo, não menos importante, é o coro de travestis que inunda o palco de viço, cor e exuberância, em um desempenho diverso e coeso no qual se destacam as composições de Gustavo Ferreira, um verdadeiro trovão purpurinado, e Henrique Mello, pela sofisticação sutil imposta à sua personagem. Ainda é preciso mencionar as construções de Silvio Eduardo e Diego Ribeiro, ambos se divertindo cada vez mais em cena de forma segura. Complementam o coro Daniela Funez, Fábio Penna, Fernanda Kawani e Maiara Cicutt.
Guttervil Guttervil e Eduardo Chagas, artistas de farta estrada cênica e alta potência, também demonstram maturidade na construção de seus personagens, seja a diminuta travesti Miss Sunshine (que não sai do telefone) ou o ardiloso assassino que representa assustadoramente o ódio homofóbico e transfóbico que o Brasil vê disposto a tomar o poder da nação.
A única atuação em lugar exposto de fragilidade é a de Léo Perisatto, na pele do professor homem trans que se apaixona por Tereza. O ator ainda titubeia ao dizer o texto de forma monocórdica e precisa ganhar mais segurança para avançar no jogo cênico proposto pelos diálogos, para que a obra não caia de ritmo em sua reta final. Este crítico sabe que trata-se de ator jovem assumindo um personagem de grande peso dentro da peça, e que o artista está disponível para evoluir cenicamente.
Para concluir, é preciso, aqui, ressaltar o trabalho do ator Tiago Leal na pele do porteiro evangélico (e tarado), demonstrando maturidade cênica em uma construção impecável merecedora de aplauso de pé.
Corram todos para assistir “Transex”, uma peça que, sem ser chata ou modorrenta, consegue trazer para o teatro importantes discussões contemporâneas, com aquele olhar pop e libertário típico do Satyros.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Transex”
Avaliação: Muito Bom ✪✪✪✪
Quando: Sexta, 23h59, sábado, 22h. 90 min. Até 6/10/2018
Onde: Espaço dos Satyros Um (praça Franklin Roosevelt, 214, metrô República, São Paulo, SP, tel. 11 3258-6345)
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia); morador da praça Roosevelt paga R$ 5
Classificação etária: 12 anos