Crítica: Peça obrigatória, Navalha na Carne Negra dá cor a quem não tem voz

Rodrigo dos Santos, Lucelia Sergio Conceição e Raphael Garcia em Navalha na Carne Negra: peça no Tups é do tipo obrigatória – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Peça do final da década de 1960, “Navalha na Carne” sintetizou como poucas, em seu drama cru no submundo da prostituição, aqueles seres à margem da sociedade e vistos por esta como escória da mesma. Disputados por grandes atores desde sua primeira montagem — com os históricos Tonia Carrero, Nelson Xavier e Emiliano Queiroz —, os três personagens da peça ganham versão impactante e inovadora nos palcos paulistanos.

Trata-se de “Navalha na Carne Negra”, dirigida por José Fernando Peixoto de Azevedo — nome importante da cena teatral paulistana que se aproxima cada vez mais do jovem teatro negro feito na cidade de São Paulo, vide o excelente “Isto É um Negro” — e com os atores Lucelia Sérgio, Raphael Garcia e Rodrigo dos Santos. O fato de todos serem negros confere nova leitura à obra e a torna altamente mais potente. Porque, inevitavelmente, o texto de Plínio Marcos ganha novo componente, sempre envolto em conflito no Brasil, mesmo que velado: o racial. Assim, aqueles serem já tão marginalizados neste clássico da dramaturgia agora ganham a cor da pele do país que mata, de forma concreta ou simbólica, sua população negra.

Como nenhum ator passa incólume por “Navalha na Carne”, nesta montagem não é diferente. Lucelia Sergio Conceição encampa com sutileza a dor da prostituta Neusa Sueli, em seu lugar de mulher usada, abusada, humilhada e submissa a seu macho, o cafetão inescrupuloso criado por um virulento “macho alfa” construído por Rodrigo dos Santos. Neusa Sueli mulher negra é uma cachoeira de significados. O casal está mergulhados em uma relação doentia, cansada, infértil. E ambos os atores passam isso para o público, deixando o ar de desalento que a obra de Plínio Marcos pede.

O ator Raphael Garcia é Veludo em Navalha na Carne Negra: uma de suas melhores atuações nos palcos – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

O surgimento de Raphael Garcia, com seu gay Veludo, repleto de atrevimento, vida e verdade cênica, irrompe na obra como uma grande dádiva, um respiro humano diante daquela desumanidade. Ator que já demonstrou potência cênica em outras montagens, Raphael Garcia vive um de seus melhores momentos no palco com o personagem, cativando o público com o forte carisma de sua precisa atuação.

Azevedo investe nos atores que tem e no jogo estabelecido por estes, como pede o clássico. E utiliza em sua montagem recurso já adotado por Marcelo Drummond na recente montagem de “Navalha na Carne” no Teat(r)o Oficina: coloca uma câmera em cena, transformando a peça em um filme criado à la Glauber Rocha diante do público, em um amplo recado de possibilidades de leituras.

O palco, em novo espaço do Tusp que conta com uma parede lateral de vidro, pelo qual entra a luz da noite da cidade, deixa ainda tudo mais poético e forte. Afinal, aqueles seres habitam as madrugadas de ruas frias e cruéis.

Rodrigo dos Santos, Raphael Garcia e Lucelia Sérgio Conceição: encontro potente de três grupos de teatro negro em Navalha na Carne Negra – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Outro fato a ser destacado é o encontro cênico de componentes de três grupos recentes e já históricos do teatro negro brasileiro: Lucelia Sergio Conceição é cofundadora da Cia. Os Crespos, já Raphael Garcia é cofundador do Coletivo Negro, enquanto que Rodrigo dos Santos integra a carioca Cia. dos Comuns.

A troca do trio na construção de diferentes camadas de opressão mútuas de seus personagens, é profunda. Tal diálogo ainda encampa distintas trajetórias teatrais em busca de um mesmo objetivo, infelizmente ainda tão árduo de ser alcançado: dar voz ao negro no teatro brasileiro.

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, canta Elza Soares com sua voz uterina em tom de protesto e revolta. E é tal protesto e revolta que ganham corpo em “Navalha na Carne Negra”, peça que consegue ressignificar um clássico. E isso, por si só, já é um grande mérito histórico: o espetáculo dá cor a quem não tem voz.

Este crítico encerra o texto com um caro pedido à direção do Tusp: “Navalha na Carne Negra” merece urgente prorrogação de temporada, pois precisa ser vista por muito mais gente. Porque é do tipo de espetáculo obrigatório.

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Navalha na Carne Negra”
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪
Quando: Quinta a sábado, 21h, domingo, 19h. 50 min. Até 12/08/2018
Onde: Tusp (r. Maria Antonia, 294, Vila Buarque, metrô Higienópolis-Mackenzie, São Paulo)
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada)
Classificação etária: 16 anos

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