De professor a guru tropicalista, Tom Zé incendeia CineOP em Ouro Preto

Tom Zé durante seu show na 13ª CineOP, em Ouro Preto – Foto: Jackson Romanelli/Divulgação/Universo Produção – Blog do Arcanjo – UOL

Por Viviane A. Pistache*
Enviada especial a Ouro Preto

A 13ª CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, chegou ao fim nesta segunda (18), após seis dias de intensa programação na qual um dos momentos mais aguardados foi a roda de conversa com Tom Zé, que também fez show no evento.

O encontro aconteceu na tarde do sábado (16) no Centro de Artes e Convenções de Ouro Preto. A exemplo do que havia sido a roda de conversa com a atriz Maria Gladys, homenageada da Mostra, e o diretor Neville D’Almeida, esperava-se um bate-papo descontraído.

Mas, Tom Zé surpreendeu a plateia ao ligar o datashow para apresentação de slides na mais tradicional postura professoral. E assim, exibindo um material didático que dá de 7 a 1 em qualquer Dallagnol, Tom Zé nos agraciou com uma verdadeira palestra sobre as origens do tropicalismo, tema central para esta edição da CineOP.

O professor pediu silêncio algumas vezes e até solicitou gentilmente que a lanchonete suspendesse temporariamente o funcionamento da barulhenta cafeteira. Mas, se engana quem achou que a aula seria careta.

Como um grande mestre da oralidade, Tom Zé nos encantou com as histórias de sua origem nordestina e suas raízes além mar que aportam na valentia moura. As heranças de Tom Zé são múltiplas e igualmente valiosas.

Para começo de conversa, seu pai ganhou na loteria em 1925. Cinco mil contos eram então uma fortuna em Irará, sua cidade natal. Descendente espiritual do líder do cangaço Antônio Conselheiro, Tom Zé foi uma criança canceriana cercada por comunistas, que como ele definiu: “têm mania de leitura e de conversa”.

Tal como um professor, Tom Zé explicou ao público da 13ª CineOP as origens do movimento tropicalista – Foto: Leo Lara/Divulgação/Universo Produção – Blog do Arcanjo – UOL

E sua força intelectual e artística também se ancora na sabedoria sertaneja, tal como cantou João do Vale e Clara Nunes na canção “Oricuri”: “Lá no sertão quase ninguém tem estudo, um ou outro lá que aprendeu ler. Mas tem homem capaz de fazer tudo, doutor. E antecipar o que vai acontecer.”

Mas como política pública é fundamental para o pleno florescimento da cultura, Tom Zé resgatou a importância da qualidade da educação pública em Salvador, fruto de uma insólita combinação entre a ditadura de Getúlio Vargas, o governo no Estado da Bahia e a Universidade da Bahia.

Segundo Tom Zé, a educação na capital baiana era uma das mais primorosas de todo o país. Esse é um elemento chave para entender a emergência do tropicalismo e de figuras do quilate de Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Glauber Rocha, dentre outras.

DNA tropicalista

Tom Zé combinou um discurso acadêmico histórico com uma boa dose de irreverência para explicar as origens do movimento tropicalista. Assim, cunhou conceitos como “Berçário dos Analfatóteles, “Banca dos Preceptores Babás” e “Creche Tropical” para explicar os marcos civilizatários que inspiraram o movimento que também tem sangue bassarabe.

Tese da qual o Caetano discorda. Mas Tom Zé se mostrou bem à vontade com as divergências e não se esquivou de falar dos idos tempos de rompimento com seus companheiros baianos com os quais compartilha o DNA do movimento tropicalista.

Nesta roda de conversa teve também teve algum espaço para discutir a presença de Neusa, sua fiel companheira, na construção da carreira do artista. Ela foi apontada como importante mentora e crítica do seu trabalho, além de ser o oráculo Google que o socorre nas muitas vezes que sua memória lhe trai.

E para encerrar redondamente esta roda de conversa, Tom Zé performou a canção “Carta”, que nos acariciou o corpo e alma com asas, além de nos encher o peito com generosos goles de lembrança, com a leveza de quem canta pra ninar até violão, nos conduzindo para o vale do sono e ao ronco do deboche que desperta.

Tom Zé fez show tropicalista apoteótico na 13ª CineOP – Foto: Jackson Romanelli/Divulgação/Universo Produção – Blog do Arcanjo – UOL

Show apoeteótico

A presença de Tom Zé na CineOP tem seu momento apoteótico na terceira noite de tropicália. A fila para a entrada abraçava o Centro de Convenções. Na platéia presenças ilustres do nosso cancioneiro, a exemplo do paraense Felipe Cordeiro que nos agraciara na noite anterior.

Coerente com o professor da roda de conversa, no show ele resgata o arrastão de Paulo Freire para nos advertir que numa vida precariada dividida em esquerda, grana e direita; é preciso estar atento e forte para não agirmos como o opressor quando tivermos a chance de sermos protagonistas da história.

Tendo em vista que a revolução não vai ser televisionada, Tom Zé sabe brincar de entreter. À semelhança de Sílvio Santos, Tom Zé abre as portas da esperança para distribuir vinis a uma plateia ávida. Como um cantor popular, Tom também tem sua face luz estrela, raio e luar, iaiá, ioió com direito a calcinha arremessada no palco.

Ele cheirou a lingerie fazendo um discurso sobre o avanço da farmacologia e a supressão do que há de singular no nosso cheiro íntimo. Mas se ele é de um incorrigível academicês, é também de um deboche irrefreável. Coloca a calcinha na cabeça tapando um dos olhos e se revela um pirata tão ele, tão Zé.

Tom Zé no palco é de arrepiar, pois ele nos coloca na companhia da lua na cacunda de um cometa e nos alça aos céus, como grande barqueiro das almas. Em gesto esteticamente iraraense regeu o grande coro de vozes com mãos de ave de rapina.

Um Erê evocando Ogogô, afinado com Agogô, fez a plateia mineira se perguntar Oncotô. Mas Tom Zé não tem tradução e qualquer tentativa de explicação redunda em confusão.

*Viviane A. Pistache é crítica e psicóloga pela UFMG, doutora em Educação pela USP e doutoranda em Psicologia pela USP. Preta das Minas Gerais, atualmente vive na Terra da Garoa se arriscando em contos, roteiros e crítica de teatro e de cinema. Ela viajou a convite da 13ª CineOP.

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