Centenário de Zélia Gattai: Anarquista e atrevida, escritora viveu de amor

Miguel Arcanjo Prado e Zélia Gattai na casa do Rio Vermelho, 2002 - Foto: Bruna Lima

Miguel Arcanjo Prado e Zélia Gattai na casa do Rio Vermelho, Salvador, 2002 – Foto: Bruna Lima

Por Miguel Arcanjo Prado

Neste 2 de julho, se aqui conosco estivesse, Zélia Gattai, a caçula atrevida de dona Angelina e de seu Ernesto, completaria cem anos. Centenário é data bonita. Merece pompa e celebração. Com certeza teria festa. Ainda mais em se tratando da amada anarquista, tão festeira que era.

Falar de Zélia Gattai, é falar de amor, falar de afeto, falar de vida, que ela sabia contar tão bem em seus livros de memórias. Mulher de Jorge Amado, não quis usar o sobrenome famoso do marido quando, aos 63 anos, estreou como escritora com estilo e brilho próprio, com o já clássico “Anarquistas, Graças a Deus”, no qual eternizou sua infância em uma rústica São Paulo que a grandeza do progresso engoliu.

Depois, foram tantos outros livros, cheios de relatos seus sobre as andanças com Jorge pelo mundo, onde viu de tudo e conheceu os mais importantes nomes do século 20, do qual sua obra é uma espécie de síntese feita a partir de uma ótica privilegiada, de uma testemunha ocular da história, como se diz. Neruda, Sartre, Beauvoir, Picasso, Carybé, Verger e tantos outros povoam as páginas saídas da memória inigualável de dona Zélia.

Porque era assim que ela era chamada no cotidiano, inclusive por este colunista, sempre com o respeito de quem era seu afilhado. Dona Zélia faz parte de muito do que sou, de minha formação primordial, por isso, para mim, sempre foi difícil escrever sobre ela, porque está tão perto, sempre. Após me encantar por seus livros, a escolhi, ainda menino, para ser minha madrinha do coração. Posto que dona Zélia aceitou de imediato e com bom grado, me dando até o fim o carinho que correspondia.

Zélia, Sartre, Beauvoir, Jorge Amado e Mãe Senhora - Foto: Fundação Casa de Jorge Amado

Zélia Gattai, Sartre, Beauvoir, Jorge Amado e Mãe Senhora – Foto: Fundação Casa de Jorge Amado

Como me esquecer das conversas ao telefone, eu em Belo Horizonte e ela em Salvador, das tantas cartas enviadas e recebidas, pelas quais esperava ansioso a passagem do carteiro? Ou da poesia que fiz e li para ela quando do lançamento do livro “Cittá Di Roma” em um Palácio das Artes lotado em BH? Lembro-me de estar com o coração palpitando, como testemunharam meu irmão Gabriel Prado e meu primo Marcelo Gonçalves.

Dona Zélia me ensinou o importante da vida, a ter generosidade, a não deixar jamais a soberba ganhar espaço, os valores éticos fundamentais e a ter gestos de afeto com quem se ama, como os cartões de fim de ano, que aprendi com ela a mandar àqueles a quem se quer bem. Guardo todos que ela me enviou em uma caixinha.

Jamais vou me esquecer de dona Zélia dominando aquela gigante casa do Rio Vermelho, em Salvador, repleta de gente, de vida e de histórias que ela gostava de contar. Lembro-me de estar lá, levado pelo primo Danilo Ribeiro e acompanhado da querida Bruna Lima, e dona Zélia falar, encabulada, que seria tri-acadêmica, pois, além da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a vaga deixada pelo marido, Jorge Amado, também havia sido eleita na Academia de Letras de Ilhéus e na da Bahia. Estava toda feliz com a notícia, quando veio me oferecer um bolo de chocolate, enquanto os rechonchudos cachorros da raça pug Fadul Abdala e Morita faziam festa entre suas pernas. A foto que abre este texto foi tirada por Bruna neste exato momento.

É com essa imagem que sempre vou ficar, da menina atrevida e anarquista de coração grande e simples, curiosa, aberta ao novo, ao outro. Em seus livros de escrita fluída e os quais é impossível abandonar antes de chegar à última página,  ela deixou registrada as memórias de uma vida vivida intensamente e com o grande amor de sua vida ao lado. Viva Zélia Gattai, neste seu centenário, nossa atrevida anarquista que viveu de amor.

Ps. Neste sábado (2), dia do centenário de Zélia Gattai, sua filha, Paloma Jorge Amado, lança no Memorial Casa do Rio Vermelho, residência do casal mais amado de nossa literatura, o livro “Pituco”, com histórias do pássaro sofrê da família Amado, com fotos de sua mãe feitas ao longo de 19 anos, tempo em que a ave viveu. Paloma guiará os visitantes pela célebre casa e autografará os exemplares entre 10h e 17h. Quem estiver na Bahia é só passar.
Ps2. A partir de 22 de julho, no Espaço Zélia Gattai, no Pelourinho, em Salvador, acontece a exposição “Zélia Gattai – Talentosa, Graças a Deus”, que vai até 26 de agosto.

Zélia Gattai (São Paulo, 1916 - Salvador, 2008) - Foto: Divulgação

A escritora Zélia Gattai (1916-2008) – Foto: Divulgação

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