Entrevista de Quinta: “Demoramos tanto para avançar, agora se recua tudo”, diz José de Anchieta

O cenógrafo e figurinista José de Anchieta - Foto: Bob Sousa

O cenógrafo e figurinista José de Anchieta – Foto: Bob Sousa

Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Foto BOB SOUSA

Grande referência do teatro brasileiro, o cenógrafo e figurinista José de Anchieta acaba de lançar o livro Cenograficamente – Da Cenografia ao Figurino, pelas Edições Sesc.

Ele, que quase foi padre e começou a carreira na TV Cultura e no Teatro de Arena, tem muitas histórias para contar. As melhores delas estão no livro, bem como seus principais projetos e parceiros. Diz que foi um trabalho de garimpagem museológica fazer o tomo, que teve ajuda fundamental de sua mulher, Chaké Ekizian Costa. O livro tem apresentação de Danilo Santos de Miranda e prefácio de J.C. Serroni, outro grande cenógrafo.

Inquieto com a atual situação de turbulência política que vive o Brasil, Anchieta nos recebeu em sua casa, no bairro de Vila Buarque, em São Paulo, para esta Entrevista de Quinta. Falou de sua trajetória, de teatro, de amigos e, como não poderia deixar de ser a um homem que lutou contra a ditadura, de política.

Leia com toda a calma do mundo.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como se organizou para escrever o livro?
JOSÉ DE ANCHIETA — Tenho uma mulher [Chaké Ekizian Costa] muito organizada, que me ajuda muito. Ela sempre falava para eu tirar cópia de todos os projetos, não levar os originais. Sempre foi muito cuidadosa. Selecionar foi um trabalho de museologia. A equipe das Edições Sesc foi fundamental.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você fez capítulos para os amigos fundamentais. Não ficou com medo de desagradar alguém que não foi citado?
JOSÉ DE ANCHIETA — Se fosse citar todos os amigos estava ferrado [risos]. O critério básico foi a qualidade da pesquisa na criação, como o Antunes Filho, com quem fiz coisas muito importantes. O livro é um encanto em termos de direção de arte.

MIGUEL ARCANJO PRADO — O que mais lhe atrai no teatro?
JOSÉ DE ANCHIETA — Teatro é trabalho conjunto. Sempre vi assim. É uma arte do coletivo. Minha cenografia sempre foi dependente da cabeça do diretor. E sempre tem aquelas questões de dinheiro reduzido [risos]. E outra coisa: o teatro é eterno, ele não vai desparecer nunca, porque é o lugar onde se discute a alma humana. Onde o espectador reflete sobre ele mesmo. Há uma relação sagrada no teatro entre artistas e público, que está à procura de sua alma, coisa que ele não vai encontrar na televisão, mas somente no teatro.

José de Anchieta conta trajetória artística no livro Cenograficamente - Da Cenografia ao Figurino - Foto: Divulgação

José de Anchieta conta trajetória artística no livro Cenograficamente – Da Cenografia ao Figurino – Foto: Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como você virou artista?
JOSÉ DE ANCHIETA — Sou de Caruaru, onde tudo é fantasia e mistério. Lá tem São João, Paixão de Cristo em Nova Jerusalém, flautistas, banda de pífaro. Caruaru tem esse encanto. Voltei lá em 1996 e estranhei. Vi uma cidade toda moderna, com prédios de vidro. É uma cidade essencialmente turística, com a feira, mas que agora não é mais na rua, mas no forródromo… Mas mantém esse encanto, as cores muito fortes.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você quase foi padre?
JOSÉ DE ANCHIETA — Sim, meu avô, a cada neto que nascia, predestinava o futuro. O meu era de ser padre, por isso o nome José de Anchieta. Outro dia liguei numa empresa e quando disse meu nome a pessoa do outro lado riu… Mas com dez anos eu fui para o seminário de São Roque. Na igreja era rodeado por santos e as nossas senhoras eram lindíssimas, pareciam Gisele Bündchen, a Charlize Theron…

MIGUEL ARCANJO PRADO — Então você não tinha vocação para padre…
JOSÉ DE ANCHIETA — Não… Era o mais baderneiro, não concordava com a igreja, fui me voltando mais para as artes. Falavam que eu tinha nascido em estado de pecado. Eu nasci em estado de graça! O Padre Bosco, meu mestre, percebia a minha rebeldia em relação para a igreja e me levou para essa área artística.

MIGUEL ARCANJO PRADO — E você saiu do seminário para a TV?
JOSÉ DE ANCHIETA — Foi em 12 de junho de 1962 que eu bati à porta da TV Cultura, que era na rua 7 de abril, ali perto da praça da República, no centro de São Paulo. Ela ainda não era estatal. A Lúcia Lambertini me atendeu e mandou chamar um maquiador e me colocou de cara para fazer figuração. Ela viu aquele nordestino de olho verde e me transformou em um chinês. No mesmo dia entrei em uma peça transmitida ao vivo!

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como você reagiu?
JOSÉ DE ANCHIETA — Entrei em pânico. Dava blackout, tudo mudava, era muito divertido. Com o tempo fui me acalmando.

MIGUEL ARCANJO PRADO — E a família?
JOSÉ DE ANCHIETA — Teatro era coisa de pecador, transviado, prostituta e proxeneta. Minha mãe me viu ao vivo na TV. Levei uma surra quando cheguei em casa. Ela ficou muito brava.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Da TV você foi para o teatro?
JOSÉ DE ANCHIETA — Isso. Trabalhei um tempo na televisão, aí fui para o Arena. Na época, o Antônio Fagundes vendia cursos de inglês. Eu era office boy. A gente se virava para ganhar um dinheirinho. Na época, o Afonso Gentil estava fazendo uns testes no Arena e nós passamos. Foi aí que descobri que era um péssimo ator.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você trabalhou com muita gente importante…
JOSÉ DE ANCHIETA — Aí comecei a fazer cenário e figurino. Nessa época trabalhei com Augusto Boal, Célia Helena, Gianfrancesco Guarnieri, Miriam Muniz, Antônio Fagundes… Comecei na cenografia por causa de uma bomba… O Carlos Takoaka, que era artista plástico e cenógrafo do grupo, precisou desaparecer por questões políticas, aí o Gentil me intimou a fazer o cenário no lugar dele.

Teatro de Arena durante a ditadura: tempos difíceis - Foto: Divulgação

Teatro de Arena durante a ditadura: tempos difíceis – Foto: Divulgação

MIGUEL ARCANJO PRADO — Foram anos muito difíceis?
JOSÉ DE ANCHIETA — Foi um período muito bravo este da ditadura. Uma vez estava na coxia e só me lembro depois de acordar na Barão de Limeira com um saco amarrado na cabeça. Era uma época braba. E digo mais, como esta que estamos vivendo agora.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Por quê?
JOSÉ DE ANCHIETA — Estamos vivendo uma época terrível, com ameaças contra gays, contra artistas… Isso tudo é fruto de uma ética norte-americana, do way of life, você consome, consome, consome… Dizem que o homem vai destruir o planeta. Quem vai destruir o planeta é o capitalismo. Querem enfiar ele na nossa goela abaixo. É muita pressão em cima da Dilma. O Getúlio não deu conta e se matou. Era igual. E o problema todo nessa história de impeachment se chama petróleo. Imagine o que vai acontecer no país governado por Michel Temer e os amigos do Eduardo Cunha?

MIGUEL ARCANJO PRADO — Você fica decepcionado em ver tudo isso vindo de uma geração que lutou tanto?
JOSÉ DE ANCHIETA — Outro dia vi uma senhora em Higienópolis reclamando no shopping com a amiga que tinha de pagar os direitos de sua empregada. Vamos voltar àquilo que era antes. O que nós vamos ver no futuro é isso, infelizmente. A Santa Casa, que é aqui do lado de casa, muitos médicos lá estão atendendo por heroísmo. O Governo de São Paulo não mantém as coisas como deveria.

MIGUEL ARCANJO PRADO — Como você vê esse processo de impeachment da presidente Dilma??
JOSÉ DE ANCHIETA — Vejo tudo isso com muita tristeza. Estou muito deprimido, chateado, triste. A gente demorou tanto para avançar e agora se recua tudo de uma vez.

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1 Resultado

  1. Paulo de Tarso Freitas disse:

    José de Anchieta! O “Zezinho piruliteiro” do “Carrocel Zangado”… Antes tínhamos feito “Arlequim de Natal”,,, Anchieta era o Serginho… Duas montagens teatrais para crianças do Teatro de Arena, nos meados dos anos sessenta (65 e 66)… Nos conhecemos num curso de teatro (Fontana) … Uma de nossas colegas era a Irene que faria cinema, posteriormente… Irene Stefania…

    Apresentei-o ao Afonso Gentil, que logo o convidou (um dos “Pedrinhos” do Sitio do Pica Pau Amarelo) para integrar o elenco daquela primeira peça… Primeira aparição no Arena de Antônio Fagundes e Carlos Augusto Strazzer, dois nomes que dispensam comentários…

    Aliás o Arlequim de Natal contou com a participação de três ex Pedrinhos: André José (o ex Pedrinho da TV Tupi do Rio de Janeiro), Diretor e protagonista da peça, David José (ex Pedrinho da TV Tupí de São Paulo), compositor das músicas e canções, e Anchieta (ex Pedrinho do antigo Canal 2 das Associadas)…

    Uma pessoa que tenha participado de sua amizade, não o esquece mais… Há poucos anos, conversando com o Fagundes, lembramo-nos, com carinho, do nosso magérrimo amigo e colega do “Carrossel”… Atualmente, pelo que vejo de suas fotos, “bem alimentado…”

    Um grande talento que se aprimorou na cenografia, mas que, ao contrário do que diz, se defendia muito bem no palco… Muito natural e espontâneo…

    Um grande “cara”! José de Anchieta!!!

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