Kiwi leva feminismo para o palco no espetáculo Carne

Fernanda Azevedo e Mônica Rodrigues encenam Carne no Sesc Belenzinho - Foto: Divulgação

Feminismo no palco: as atrizes Fernanda Azevedo e Mônica Rodrigues encenam Carne – Histórias em Pedaços, da Kiwi, no Sesc Belenzinho, em São Paulo até 6 de março – Foto: Divulgação

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

A partir deste sábado (27) a Kiwi Companhia de Teatro encena seu espetáculo-performance Carne – Histórias em Pedaços, dentro do projeto Arte – Substantivo Feminino do Sesc Belenzinho (av. Padre Adelino, 1.000), em São Paulo. O foco da ação é dar lugar a distintos olhares artísticos sobre e para a mulher, com é o caso da peça. A nova temporada acontece sexta e sábado, às 21h30, e domingos, às 18h30, e vai até 6 de março, com entrada a R$ 20.

Em cena, estão Fernanda Azevedo (vencedora do Prêmio Shell de melhor atriz) e Mônica Rodrigues. A obra, apresentada pela primeira vez em Bogotá, na Colômbia, em 2009, mostra o panorama da opressão de gênero e a situação específica da violência contra as mulheres no Brasil, com inspiração na obra da autora austríaca Elfriede Jelinek, Nobel de literatura em 2004, e também da historiadora francesa Michelle Perrot.

O projeto ainda incluiu a oficina As Mulheres e os Silêncios da História que será ministrada nos dias 1º e 2 de março, próxima terça e quarta, das 14h às 19h com foco em mulheres jovens e adultas, artistas ou não, com interesse em construir e compartilhar suas histórias a partir de estímulos artísticos.

O site propôs às atrizes que se entrevistassem mutuamente sobre o espetáculo e sua temática. Veja só o que elas perguntaram e o que responderam.

O site propôs que Fernanda Azevedo e Mônica Rodrigues se entrevistassem sobre a peça Carne - Foto: Divulgação

O site propôs que Fernanda Azevedo e Mônica Rodrigues se entrevistassem sobre a peça Carne – Foto: Divulgação

FERNANDA AZEVEDO — Dentre as questões defendidas pelos diversos movimentos feministas, quais você destacaria?
MÔNICA RODRIGUES — As questões que destacaria e que vejo ressonância no particular, no cotidiano, na periferia onde moro e também nos locais onde dou aula como arte-educadora, destacaria as questões sobre os direitos reprodutivos da mulher e a luta da mulher pela conquista desses direitos. Porque esses direitos sobre seu próprio corpo ainda não lhe pertencem, seja através da interrupção voluntária da gravidez ou os direitos de decidir quando levar a cabo uma maternidade. Uma outra questão feminista e muito mal disfarçada, porque não é considerada uma questão política, é a questão da sobrecarga doméstica. Os serviços de cuidado e doméstico são feitos mais de dois terços deles pelas mulheres. Enquanto as mulheres gastam cerca de 20, 25 horas semanais com esses serviços, que inclui também cuidado de crianças e idosos, os homens gastam menos de 10 horas semanais. Considero esses dois os principais problemas.

FERNANDA AZEVEDO — Das diversas apresentações do Carne, você se lembra de momentos especiais durante a peça ou depois, nos debates?
MÔNICA RODRIGUES — Entre os mais especiais foi encontrar as feministas do MST lá em Eldorado dos Carajás e encontrar muita empatia e, mais do que isso, igualdade de luta com as mulheres do MST, as mulheres camponesas, as mulheres lutadoras de lá. Eu destacaria também o dia em que apresentamos em um albergue para homens em situação de rua na sede da Cia. Estável, que é grupo parceiro da Kiwi. O debate foi tão incrivelmente rico porque tivemos homens completamente esclarecidos sobre os direitos das mulheres, entre estes homens de situação de rua, como também outros completamente indignados e chocados, pondo toda a crueza do seu machismo ali para outras mulheres e homens na plateia. Uma última situação que destacaria foi a apresentação para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Foi quando percebemos que nossos defensores, que são pagos com dinheiro púbico, parte deles não se encontra ainda amadurecida com relação à Lei Maria da Penha. Mas isso não foi geral, isso partiu de um cidadão e parte dos outros defensores e das mulheres defensoras já estavam conscientes de que a Lei Maria da Penha foi um avanço e que é preciso lutar muito para que ela seja mais aplicada e conhecida na sua totalidade.

FERNANDA AZEVEDO — Você como artista e educadora, como diferencia uma atitude feminista na sua vida nestes dois campos de atuação?
MÔNICA RODRIGUES — Atitude feminista é uma atitude muito simples, muito clara: ter voz, ter a atitude de ter voz. De se empoderar do próprio instrumento da voz. Muitas mulheres que se intitulam feminista mas não se posicionam em situações de injustiça e igualdade nas menores situações do cotidiano, seja num transporte público, seja diante do comportamento sexual de uma outra pessoa. Ou seja, não se incomodar com a orientação sexual de um ou de outra. Eu conheço pessoas que não têm voz. Que falam, falam, mas não têm voz. E de outra forma conheço mulheres que não se reconheceriam como feministas se você perguntasse para ela, mas que desde o momento que elas acordam até a hora que elas dormem elas têm atitudes éticas, sem ignorar que o feminismo está dentro de uma compreensão sistêmica, dentro de um país que ignora sua condição de raça, que ignora sua condição de etnia, que ignora a questão da opressão religiosa. São mulheres que a princípio ainda nãos se definiriam como feministas, mas que têm atitude feminista. Atitude feminista é ao mesmo tempo complexa e muito simples: é ter voz, é ter a coragem de ter voz.

Em Carne, Mônica Rodrigues e Fernanda Azevedo colocam a pauta feminista em cena - Foto: Divulgação

Em Carne, Mônica Rodrigues e Fernanda Azevedo colocam a pauta feminista em cena – Foto: Divulgação

MÔNICA RODRIGUES — O que é ser uma atriz feminista hoje no Brasil para você?
FERNANDA AZEVEDO — É ser antes de uma atriz uma mulher que tem consciência da desigualdade enorme que existe entre homens e mulheres não só no Brasil, mas em outros continentes também. Entendendo também que essa desigualdade só vai ter fim na luta coletiva das mulheres e que o teatro é um espaço, sim, para debater esse assunto.

MÔNICA RODRIGUES — Como você vê e reconhece, ou não, o feminismo nos demais trabalhos artísticos em São Paulo?
FERNANDA AZEVEDO — Eu acho que tem crescido o interesse de artistas, homens e mulheres, de falar sobre a questão de gênero e a violência entre homens e mulheres ou das diferenças da desigualdade de direitos entre homens e mulheres. Em São Paulo a gente tem grupos importantes como o Rubro Obsceno, o Coletivo Segunda Opinião, que agora se transformou em Vulva da Vovó, a gente teve As Atuadoras, que é um grupo que não existe mais mas fez um trabalho chamado Mulher a Vida Inteira, que era feito por mulheres somente para mulheres. É importante falar também do grupo Capulanas, porque são mulheres negras que falam sobre mulheres negras e representam o feminismo negro, que é importante citar, porque falar de mulher negra é falar de uma dupla opressão. Há outros coletivos também em outros lugares do Brasil… As Loucas de Pedra Lilás, que trabalha muito tempo, o Obsceno Agrupamento, As Marias da Graça, no Rio, que produzem um festival de mulheres palhaças… Então, a gente tem um número crescente de artistas que estão se interessando em tomar a frente e ter um protagonismo no mundo das artes cênicas, no mundo do teatro. Isso é muito importante, porque você vê o aparacimento do trabalho de diretoras, dramaturgas, iluminadoras trabalhando em lugares que antes eram basicamente masculinos. Isso vem crescendo. Nem todos esses grupos tratam especificamente da questão do feminismo, mas por serem mulheres e colocarem de alguma forma seu olhar enquanto mulher no mundo já causa um tipo de estranhamento. É um trabalho que é diferente da produção prioritariamente masculina.

MÔNICA RODRIGUES — Você sente necessidade de fazer um outro trabalho estético com a Kiwi com o mesmo tema, feminismo, ou se sente mais vontade ampliar o alcance do Carne e a rede de movimentos sociais e o diálogo com essas novas frentes?
FERNANDA AZEVEDO — Um pouco das duas coisas. O Carne continua no nosso repertório há muitos anos e provavelmente a gente vai continuar fazendo. Além dele, vamos damos a oficina As Mulheres e os Silêncios da História, que vem sendo aprimorada nos últimos anos, é uma oficina que eu dou em parceria com a atriz Maysa Lepique, que era do grupo As Atuadoras, então o trabalho continua no repertório. As próximas montagens da Kiwi não estão focadas como o Carne na questão de gênero e da opressão das mulheres, mas, de certa forma, isso está presente em todos os nossos trabalhos, já que estamos discutindo nossa sociedade e isso é um ponto importante a ser discutido. Então, sempre a questão da opressão da mulher está em nossos trabalhos, seja no foco principal ou de alguma maneira na pesquisa ou no resultado dos outros trabalhos.

Em Carne, o discurso feminista ganha força no teatro - Foto: Divulgação

Em Carne, o discurso feminista ganha força no teatro – Foto: Divulgação

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